quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/16/2006 08:38:41 AM

O EX-CASADO

Ilustração de Man Ray


Fabrício Carpinejar





Ficar solteiro depois de anos de casado é terrível. Como perder a memória e recuperar devagar as lembranças. Já na hora de dormir, o ex-casado não vai avançar ao outro lado da cama. Mesmo sozinho, a sensação é que tem outra pessoa dormindo com ele. Não sai de seu cantinho, como uma ostra, condicionado aos movimentos da mulher que deixou de existir. Pela sede, identifica-se que está novamente solteiro. O ex-casado vai se levantar várias vezes para tomar água e, de alguma forma, acordar do pesadelo.


O casado é como um atleta do remo. Treinou para o esporte em equipe. Quando se separa, a canoa torna-se maior do que o próprio rio. Parece banco de praça na segunda-feira. Sem a força de outros braços, a madeira se desequilibra e rasteja. O ex-casado tem agendas imprestáveis. Ao ligar para velhas amigas, ex-namoradas e esposas que poderiam ter sido, não consegue conversar com naturalidade. Exerce um serviço de telemarketing. Um péssimo entrevistador. Começa a responder antes de perguntar. Desconhece como chegar aos assuntos que o interessam, tipo "quer sair comigo?" e "está livre esta noite?". Ou como explicar a ligação repentina, após dez anos. O ex-casado tem uma vaga sensação de que o mundo esperou igualzinho como da última vez que ele o viu antes de entrar no casamento. Confia na máquina do tempo e no congelamento da espécie. Acredita que suas paixões não casaram, não tiveram filhos, não mudaram de opiniões. Um dos equívocos do ex-casado é deduzir que toda mulher o aguarda e queria ficar com ele. O ex-casado pensa que foi ele que escolheu sua vida. O ex-casado se entrega pela educação desajeitada Demora horas e horas ao telefone para descobrir se o antigo caso está comprometido. Pode desligar sem descobrir.


Não suporta a solidão. Não suporta não ter os horários controlados e o excesso de liberdade. O que adianta a liberdade sem alguém para testemunhá-la? O ex-casado diminui sua conta telefônica. Não há ligação de sua mulher preocupada com o seu trajeto. Ele pode dormir fora e morrer atropelado, demorará um campeonato inteiro para chamar atenção de sua ausência. O ex-casado não tem um amor para reconhecer seu corpo.


Bota música alta para falar sozinho. Bota televisão alta para não se enxergar isolado e diminuído. O ex-casado tem compaixão súbita pelas plantinhas. Entende o estado vegetal.


O apartamento do ex-casado é um orfanato para adultos. Terá que almoçar e jantar sozinho. Sempre sobrará comida, pois estava acostumado a raciocinar pela porção a dois. Descobrirá o quanto não era responsável pela sua rotina. O ex-casado terá que lavar as roupas e os pratos, passar as camisas, cuidar do lixo, fazer supermercado, colocar remédio de mosquito. O impulso é pedir demissão do serviço para cuidar da casa. O ex-casado esqueceu como cantar uma desconhecida. De que modo contar sua história sem mencionar os últimos dez anos, justamente os melhores? Sem amigos para ir a um bar, dançará toda noite com uma garrafa de cerveja. O ex-casado não convence nem a cerveja a dormir com ele.


O ex-casado não confere as validades dos produtos da geladeira. Estatisticamente tem grandes chances de morrer intoxicado. Demora para sair de casa. Não dá para perguntar onde está aquela roupa. O ex-casado é um filme pornô com legendas. O pior sofrimento ao ex-casado é ter fantasias eróticas com sua ex-mulher. Quando estava com ela, nunca havia cogitado essa possibilidade.


O ex-casado é um sofredor nato. Os móveis estão desfalcados com a partilha. Falta uma cômoda ou um sofá. Os móveis do ex-casado também se divorciaram e choram marcas nas paredes.



O mais difícil para o ex-casado é perceber que sua mulher era a única, como ele, que não tropeçava no escuro. Conhecia os movimentos da residência, os corredores, os becos, os berros, as gavetas, as gravatas, as cicatrizes. Agora, com a próxima mulher, tudo precisará ser feito de luz acesa. Sem o mistério e a penumbra da convivência.

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