(abril de 2004)
Foto de Renata Stoduto/Divulgação

Carpinejar relaciona aqui sua vida com sua obra, numa entrevista concedida a Olegario Schmitt, especial para o PD.
PD - Fale-me da sua infância e adolescência.
CARPINEJAR - Fui um menino e adolescente tímido. Eu tinha poucos amigos. Quando pequeno, jogava futebol todos os dias. Falava errado, usava botas ortopédicas e enfrentei desde cedo a gozação dos colegas. Aprendi a me criticar para ganhar autonomia. Aprendi a não me levar muito a sério. Eu era tão puro que parecia deslocado do mundo. Eu não sou mais puro mas continuo deslocado. Desloquei a língua junto. Deslocar a língua é poesia, fazer do erro música.
PD - Você foi influenciado pelo fato de seus pais serem escritores?
CARPINEJAR - Meu irmão mais velho, Rodrigo, escrevia letras para uma banda de rock do bairro. Fazia seu caderno de poesias. Eu permanecia horas conversando com seus amigos, convivendo com o sentido poético, tomando café para ajudar na escolha da palavra final. Isso me ajudou, meu irmão foi o intermediário entre minha geração e a de meus pais. Pena que ele largou a poesia. Um dia ela volta para assombrá-lo. E teremos mais um Carpi Nejar para confundir.
PD - Com que idade você escreveu seu primeiro poema? Você lembra dele?
CARPINEJAR - Meu primeiro poema? Isso é mistificação. O primeiro poema aconteceu sem tê-lo escrito. As crianças falam poesia a toda hora. Tropeçar na fala é procurar construir um mundo mais direto, mais justo, mais sensível e tátil. Prefiro pensar com a respiração, ser levado pela sonoridade das palavras para o quarto das imagens. Eu passei a me disciplinar para distração aos 16 anos. Meu primeiro poema publicado foi no convite de enterro de minha avó, aos 7 anos. Eu nasci de sua morte.
PD - A junção dos dois sobrenomes foi para se dissociar dos seus pais?
CARPINEJAR - Foi para me dissociar de mim. Eu deixo de ser alguém para ser ninguém. Como autor, quero ser invisível, desejo que o leitor me procure dentro do livro para se encontrar. Eu sou a isca de sua voz. A melhor lembrança é a que a leitura inventa. Poema é porão. Depois de publicado o livro, uma casa é construída em cima.
PD - Fatos marcantes de sua vida deram ou dão origem a poemas? Como você os processa dentro da poesia?
CARPINEJAR - Os detalhes, os refugos do dia, os escombros do silêncio formam a exuberância da fala. Me interesso por aquilo que é desperdiçado pelas pessoas, por aquilo que não é lembrado. Ouço a rua como extensão de meu pátio. Moro perto do trem e ele é o único relógio de minha casa. Sei as horas pelas suas corridas. Os fatos ínfimos de minha vida geraram poemas. A grandeza está onde não procuramos. Lembrar é inventar. Tudo o que evoquei do que vivi já é uma realidade misturada. Todo memorialista é um ficcionista. Todo ficcionista é um historiador do sonho. Percebo a poesia como o início dos olhos. Eu centro minha ficção poética no núcleo familiar. Cinco Marias (Bertrand Brasil, 123 páginas), meu novo livro, traz uma conversa ininterrupta de uma mãe e suas quatro filhas, imitando os lances do jogo infantil. Gosto de ser o outro para não me acostumar comigo, para nunca mofar em vaidade. Já fui um velho em Terceira Sede, uma árvore em Biografia, cinco mulheres agora nesse último.
PD - Sua vida caminha paralela à criação literária ou não?
CARPINEJAR - Alimento vários heterônimos: sou também jornalista e professor. Uma vida completa à outra, mas não é uma convivência pacífica. Poesia é doação e surge a qualquer momento. Ela instala o caos e é insaciável. Dorme tarde e acorda cedo. Não anda de carro, somente de bicicleta. Não aceita realidade pronta e comida congelada.
PD - Como mero leitor de sua obra, qual poema lhe chama mais atenção? Por quê?
CARPINEJAR - Não sou de eleger poemas. Não há um poema melhor do que o outro, há poemas mais invisíveis. Não sou escritor de um livro, sou escritor de uma obra. Minha intenção é passar uma visão de mundo, fazer um único romance a unificar meus escritos. Cada capítulo é um trecho desse universo versificado.
PD - Você pode resumir sua vida em um só poema? Ele já foi escrito?
CARPINEJAR - Resumir a vida em um só poema é epíteto. Quando morrer, não quero legenda. Uma cruz amarrada com pano já me é suficiente. Meu corpo não precisa de um nome para ser identificado.
PD - No universo da arte, fora a poesia, o que lhe toca mais profundamente?
CARPINEJAR - Tudo. Eu já lidei com a pintura, vejo a poesia como uma montagem cinematográfica, recito como quem participa de uma peça de teatro. Meu cineasta predileto é o russo Tarkovski. Amo o que é feito com sinceridade, as mentiras honestas, o que desperta a emoção sem pensar e pensa a emoção sem despertar.
PD - Você considera sua carreira literária um exemplo a ser seguido?
CARPINEJAR - Não considero a literatura uma carreira. Não há plano de saúde ou triênio. Ela é vocação, minha forma de alfabetizar os pés. Os pés também precisam escrever. Eu não me sigo, eu me despisto.
Faço minhas suas palavras em "Eu nasci de sua morte', sempre gostei de usar as palavras a imaginação e até mesmo o silêncio para me expressar, mas esse comportamento se intensificou mais pela morte de meu tio, incluse, hoje faz 5 anos seu falecimento. Enfim, se alguém ler algum excrito meu, esse lê a mim.
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