quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/28/2004 11:47:41 PM

ENTREVISTA NO PROJETO DIÁRIO DE LITERATURA

(abril de 2004)


Foto de Renata Stoduto/Divulgação




Carpinejar relaciona aqui sua vida com sua obra, numa entrevista concedida a Olegario Schmitt, especial para o PD.


PD - Fale-me da sua infância e adolescência.

CARPINEJAR - Fui um menino e adolescente tímido. Eu tinha poucos amigos. Quando pequeno, jogava futebol todos os dias. Falava errado, usava botas ortopédicas e enfrentei desde cedo a gozação dos colegas. Aprendi a me criticar para ganhar autonomia. Aprendi a não me levar muito a sério. Eu era tão puro que parecia deslocado do mundo. Eu não sou mais puro mas continuo deslocado. Desloquei a língua junto. Deslocar a língua é poesia, fazer do erro música.


PD - Você foi influenciado pelo fato de seus pais serem escritores?

CARPINEJAR - Meu irmão mais velho, Rodrigo, escrevia letras para uma banda de rock do bairro. Fazia seu caderno de poesias. Eu permanecia horas conversando com seus amigos, convivendo com o sentido poético, tomando café para ajudar na escolha da palavra final. Isso me ajudou, meu irmão foi o intermediário entre minha geração e a de meus pais. Pena que ele largou a poesia. Um dia ela volta para assombrá-lo. E teremos mais um Carpi Nejar para confundir.


PD - Com que idade você escreveu seu primeiro poema? Você lembra dele?

CARPINEJAR - Meu primeiro poema? Isso é mistificação. O primeiro poema aconteceu sem tê-lo escrito. As crianças falam poesia a toda hora. Tropeçar na fala é procurar construir um mundo mais direto, mais justo, mais sensível e tátil. Prefiro pensar com a respiração, ser levado pela sonoridade das palavras para o quarto das imagens. Eu passei a me disciplinar para distração aos 16 anos. Meu primeiro poema publicado foi no convite de enterro de minha avó, aos 7 anos. Eu nasci de sua morte.


PD - A junção dos dois sobrenomes foi para se dissociar dos seus pais?

CARPINEJAR - Foi para me dissociar de mim. Eu deixo de ser alguém para ser ninguém. Como autor, quero ser invisível, desejo que o leitor me procure dentro do livro para se encontrar. Eu sou a isca de sua voz. A melhor lembrança é a que a leitura inventa. Poema é porão. Depois de publicado o livro, uma casa é construída em cima.


PD - Fatos marcantes de sua vida deram ou dão origem a poemas? Como você os processa dentro da poesia?

CARPINEJAR - Os detalhes, os refugos do dia, os escombros do silêncio formam a exuberância da fala. Me interesso por aquilo que é desperdiçado pelas pessoas, por aquilo que não é lembrado. Ouço a rua como extensão de meu pátio. Moro perto do trem e ele é o único relógio de minha casa. Sei as horas pelas suas corridas. Os fatos ínfimos de minha vida geraram poemas. A grandeza está onde não procuramos. Lembrar é inventar. Tudo o que evoquei do que vivi já é uma realidade misturada. Todo memorialista é um ficcionista. Todo ficcionista é um historiador do sonho. Percebo a poesia como o início dos olhos. Eu centro minha ficção poética no núcleo familiar. Cinco Marias (Bertrand Brasil, 123 páginas), meu novo livro, traz uma conversa ininterrupta de uma mãe e suas quatro filhas, imitando os lances do jogo infantil. Gosto de ser o outro para não me acostumar comigo, para nunca mofar em vaidade. Já fui um velho em Terceira Sede, uma árvore em Biografia, cinco mulheres agora nesse último.


PD - Sua vida caminha paralela à criação literária ou não?

CARPINEJAR - Alimento vários heterônimos: sou também jornalista e professor. Uma vida completa à outra, mas não é uma convivência pacífica. Poesia é doação e surge a qualquer momento. Ela instala o caos e é insaciável. Dorme tarde e acorda cedo. Não anda de carro, somente de bicicleta. Não aceita realidade pronta e comida congelada.


PD - Como mero leitor de sua obra, qual poema lhe chama mais atenção? Por quê?

CARPINEJAR - Não sou de eleger poemas. Não há um poema melhor do que o outro, há poemas mais invisíveis. Não sou escritor de um livro, sou escritor de uma obra. Minha intenção é passar uma visão de mundo, fazer um único romance a unificar meus escritos. Cada capítulo é um trecho desse universo versificado.


PD - Você pode resumir sua vida em um só poema? Ele já foi escrito?

CARPINEJAR - Resumir a vida em um só poema é epíteto. Quando morrer, não quero legenda. Uma cruz amarrada com pano já me é suficiente. Meu corpo não precisa de um nome para ser identificado.


PD - No universo da arte, fora a poesia, o que lhe toca mais profundamente?

CARPINEJAR - Tudo. Eu já lidei com a pintura, vejo a poesia como uma montagem cinematográfica, recito como quem participa de uma peça de teatro. Meu cineasta predileto é o russo Tarkovski. Amo o que é feito com sinceridade, as mentiras honestas, o que desperta a emoção sem pensar e pensa a emoção sem despertar.


PD - Você considera sua carreira literária um exemplo a ser seguido?

CARPINEJAR - Não considero a literatura uma carreira. Não há plano de saúde ou triênio. Ela é vocação, minha forma de alfabetizar os pés. Os pés também precisam escrever. Eu não me sigo, eu me despisto.

Um comentário:

  1. Faço minhas suas palavras em "Eu nasci de sua morte', sempre gostei de usar as palavras a imaginação e até mesmo o silêncio para me expressar, mas esse comportamento se intensificou mais pela morte de meu tio, incluse, hoje faz 5 anos seu falecimento. Enfim, se alguém ler algum excrito meu, esse lê a mim.

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