quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/25/2004 10:29:56 AM

Deu na Revista Continente Multicultural - Ano 3 - Março/2004:


PORTUGAL E BRASIL: MELANCOLIA EM DOIS SOTAQUES

Saturno nos Trópicos reconstitui a história do pensamento melancólico, partindo do livro "Anatomia da melancolia", de Robert Burton, até o "Retrato do Brasil - Ensaio sobre a Tristeza Brasileira", de Paulo Prado.


Fabrício Carpinejar*



Dois livros, dois destinos complementares. Ambos são ensaios de fôlego, com bagagem enciclopédica. O primeiro é Mitologia da saudade (Companhia das Letras, 1999), de Eduardo Lourenço, grande crítico português, prêmio Camões de Literatura. O segundo é Saturno nos Trópicos - A Melancolia Européia Chega ao Brasil (Companhia das Letras, 2003), do médico e ficcionista Moacyr Scliar, agora integrante da Academia Brasileira de Letras. Impressiona o conteúdo contíguo dessas obras, uma interrogando a outra involuntariamente. Eduardo Lourenço apresenta as características do humor melancólico português, identificado em boa forma física nos versos de Camões, Almeida Garret, Teixeira Pascoaes e, posteriormente, em Fernando Pessoa. No autor de "Tabacaria", encontra-se um riso saudosista, que não espera a resposta (tem a exata noção do que se passou), dono de uma lucidez resignada, um reconhecimento saciado. A melancolia lusitana não equivale ao "antipensamento europeu", presente em Nietzsche. Diz mais respeito ao estado de "desinteresse ativo", de conformidade entre o acontecido e o ideal. É feliz, apelidada de saudade. Enquanto a nostalgia representa uma ausência vivida e o sentimento de ruptura dos laços com a memória; a saudade é a consciência carnal da finitude, numa temporalidade apaziguada. O espanhol Miguel de Unamuno, filósofo Do sentimento trágico da vida e um dos que melhor aproveitaram a culpa imposta ao desejo no catolicismo, explica: "quando nada resta de nada, fica ainda o tudo desse nada". O tudo desse nada simboliza a saudade. O nada desse tudo talvez seja a melancolia do brasileiro, altamente irônica, oferecendo um sentimento de perda mas com uma total irresponsabilidade com o destino. É uma saudade insatisfeita, inconseqüente, onde não se mede esforços em suplantá-la com a esperança. Existe uma maior troça do que o emplasto do defunto Brás Cubras, de Machado de Assis, para corrigir a "melancólica" humanidade do brasileiro? Ou a morte de Macabéia, personagem de A Hora da Estrela de Lispector, justamente quando a vidente a anuncia um amor generoso? Se a melancolia portuguesa é auto-suficiente, de um passado fadista, glorioso e sebastianista, a do brasileiro se condiciona à espera de um futuro sempre atrasado ao seu compromisso. Poder-se-ia dizer de um futuro desprovido de antecedentes, desmemoriado. Decorre desse ponto a importância do que virá, do porvir, da expectativa ardente e messiânica de uma mudança, articulada em narrativas de Lima Barreto, de Machado, de Euclides da Cunha e de Clarice.



A melancolia no país não vem do espelho narcisista baudelariano, muito menos da náusea paralisante de Sartre (curiosamente, o pensador francês quase chamou sua obra Náusea de Melancolia). Moacyr Scliar prepara um apanhado histórico minucioso, com um prelúdio dos primórdios de males que ajudam a esclarecer e fundamentar o destino da melancolia no Brasil. Suas hipóteses não são chutes de zagueiro, mas passes bem encaminhados de volante. Aborda as doenças como fenômenos culturais, não apenas biológicos, de transição entre eras e períodos. Exemplifica que a peste a sífilis surgiram em momentos de transição, no fim da Idade Média e Renascimento, desencadeando um mal-estar definitivo na civilização, que se acostumou a enxergar a morte como companhia banal e irremediável e procurou abrir os horizontes com as ciências.



Com cinco anos de pesquisa e erudição transmitida em linguagem acessível, sem pedantismo, o autor gaúcho narra e mostra como a melancolia se popularizou, no rastro da evolução de costumes e do surgimento e combate das infecções. Trabalha na encruzilhada entre medicina e literatura. Se a peste favoreceu uma noção mais clara da melancolia com o clássico de Burton na Inglaterra, de 1621; no Brasil, o estopim ocorre em nome de outra doença, a febre amarela, que provoca um surto em 1849, a partir da chegada de um navio norte-americano vindo da escala New Orleans/Havana. Como não poderia deixar de ser, toda a calamidade tem um porta-voz. No século XVI, havia sido Burton (seu clássico ainda é estranhamente inédito no Brasil). Em São Paulo, do início do século XX, marcando a transição para a modernidade, a figura teórica sustenta-se em Paulo Prado, com Retrato do Brasil - Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, um sucesso editorial. A depressão brasileira, escondida pela malandragem, resultaria da fusão de três legados: a tristeza lusa dos colonizadores; a do índio, dizimado; e a do negro, escravizado.



Entre os viventes de Saturno nos trópicos, o que se sobressai é Oswaldo Cruz, o médico pioneiro que briga com os cariocas durante a Revolta da Vacina. É interessante que o protagonista de Sonhos Tropicais seja retomado como um dos guias do ensaio. Movimentos como a Revolta da Vacina, Muckers, Canudos e o Contestado foram reações extremadas à vocação ao desespero. Do mesmo modo, o carnaval, o futebol, a tropicália, o humor e a cachaça encarnam ações radicais do otimismo. O comportamento bipolar do brasileiro ganhou um intérprete à altura. Uma consulta com Moacyr Scliar assegura longevidade intelectual.


* Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de Caixa de sapatos (Companhia das Letras, 2003), entre outros.

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