quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/1/2004 02:10:54 AM

DIAS

Gravura de Paul Klee


Renato Dias é um pintor poeta. Fala calmo mesmo quando está nervoso. Falar com ele é ouvir montanhas longínquas, o som azulando as árvores. Meu amigo perdeu a esposa há pouco tempo. Saiu de casa para suportar a tristeza. Abandonou a porta azul, o molho de chaves, os quadros, o relógio de madeira que era o gorro da sala. Todo móvel, a gaveta com trinco frouxo, o avental, os chinelos, a toalha secando, o par de copos, os garfos, os travesseiros bordados com as iniciais, o pente faziam a ausência dela sair da cama. Havia uma mão aquecendo a dele antes de tocar os objetos. A voz é como uma agulha cerzindo. A agulha volta, como os elepês ao final. Arranha onde havia sangue. Sua biblioteca apresenta estantes largas como uma arquibancada. Os livros de Renato têm 50 cm de altura. Nos últimos anos, sua mulher sofria grave problema de visão. Ele não se deu por vencido e passou a ampliar as obras que comprava. Era um ritual vê-lo pela cidade carregando pastas com as cópias enormes, faceiro com sua invenção, um homem respirando debaixo das braçadas de buquê. Ela lia as folhas espantosas de hortelã, os poemas, os romances, como formigas tomando a lupa. Logo depois ficava com vontade de comer geléia de framboesa. Amar é uma fome mais antiga do que a boca.

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