quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/2/2004 02:41:21 PM

SITE DA LIVRARIA CULTURA, SEÇÃO BIBLIOTECA IDEAL:


DEZ LIVROS QUE NÃO MUDARAM MINHA VIDA

Foto Rodrigo Rocha


Fabrício Carpinejar




Eu poderia ter sido o que não tenho, o que também daria trabalho. Decidi ser o que sobrava em mim. Nunca fui de procurar as enciclopédias para me explicar. Pareciam sábias em excesso para gastar tempo me ensinando. Usavam abotoaduras, gravata e bengala. Olhavam vesgo para quem se aproximava. Cuspiam seco. Bocejavam com as mãos levantadas. Muito educadas para se sujarem com a vida. Procurei livros pequenos, miúdos, de poemas. Eles me ensinaram a errar os caminhos, a conhecer bem mais o mundo do que eu queria ou podia. Imagina se eu acertasse o trajeto a cada manhã? Seria a repetição do mesmo verbete. Os livros de poesia me fizeram perder a cabeça para ganhar de volta o corpo. Dez livros me ajudaram a não mudar minha vida. Não mudar a vida é confiar nela. Hoje, por exemplo, não jogo moedas de costas para o poço. O poço não é um chapéu pedindo esmola. Nós é que estamos pedindo esmolas ao poço. Eu tampouco sou mal-educado para falar dele pelas costas. A realidade sempre tem um avesso, uma outra versão. Não me contento com uma única mentira. Prefiro uma mentira acompanhada. Duas mentiras juntas formam uma verdade.


Tantas vezes escutei que a poesia é complicada, difícil. Leitor alega que não entende o que o autor quer dizer. Parece que é preciso freqüentar um workshop para compreender uma seqüência de poemas. Ninguém depende de curso para ler conto, romance ou auto-ajuda. O mesmo funciona com os versos. Não é matéria de estudo, mas leitura alheia aos horários. A gente fala por imagens todo o dia e não percebemos que é poesia. No futebol, janelinha, lençol e chapéu são metáforas que salvam o locutor da garganta seca, de ficar horas descrevendo os movimentos da partida. Até porque seria gol e a narração ainda estaria no início do lance. O poeta é um paramédico, capaz de ressuscitar o cotidiano, acordar a língua, surpreender, provocar - ao mesmo tempo - a graça, o riso e o choro. Quem não precisa disso? Que procure a sabedoria das enciclopédias e suas capas duras.



Divina Comédia, Dante Aligheri: li todas as ilustrações da Divina Comédia e posso garantir que os versos são bem mais sádicos. Maquiavel não chega perto do inferno de Dante. Santo Agostinho é um ingênuo diante de seu paraíso.



Marcas Marinhas, Saint-John Perse. Poeta de puro espírito. Em Anábase, ele canta o deserto e o exílio. Em Marcas Marinhas, canta o mar e os afazeres da espuma, os homens nos tombadilhos e as mulheres ancestrais. Um dos franceses piromaníacos, incendiário da linguagem como Rimbaud. "Um grande princípio de violência nos comandava os costumes". Ele tem razão, os hábitos nos violentam.


Sete Rosas mais tarde, Paul Celan. Escrita extremada, que não aceita suborno, chantagens, desconto. Um dos vôos mais altos da língua alemã. Ele adverte: "Não separes o Não do Sim". Sim, não, talvez. No final, a gente se dá conta de que concordar é realmente discordar.


Tabacaria, Fernando Pessoa. Simplesmente genial. Eu li esse poema aos 13 anos, me formei, me separei, encontrei um grande amor, tive dois filhos, mudei cinco vezes de emprego e ainda sei de cor.


Obra completa, João Cabral. Não adianta perder tempo escolhendo um livro apenas de João Cabral. Ele não desperdiça um chute. Criou o mais poderoso sistema anti-vírus da poesia brasileira. Todos que tentam o imitar acabam sendo denunciados.


Claro Enigma, Carlos Drummond de Andrade. Ele fez o poema mais perfeito da língua no século XX, Máquina do Mundo. É de ler com os olhos sentados. Descreve a vacilação de um homem diante de uma estrada pedregosa. A expectativa mínima já é esperança.


Muitas vozes, Ferreira Gullar. Um autor que sobreviveu a si mesmo e a sua geração. Não perdeu o pique. Poemas curtos, intensos e esmagadores sobre os óculos do pai ou impressões da maturidade. "Todos os movimentos do amor são noturnos mesmo quando praticados à luz do dia", quem diz isso merece respeito.


Romanceiro Gitano, Federico García Lorca. Teatro cantado, palco móvel, fábulas, poesia como dança. Federico tinha castanholas no lugar dos dentes.


Cartas de aniversário, Ted Hughes. Aconselhável para quem sofre de insônia ou pretende parar de roncar. O poeta inglês faz uma prestação de contas com sua ex-mulher Sylvia Plath, também poeta, que se matou aos 30 anos.


Belo Belo, Manuel Bandeira. Só com esse título já fico de bom humor. Nunca uma redundância deu tão certo. Ele lançou a teoria do poeta sórdido, "aquele em cuja vida há a marca suja da vida".

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