quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/7/2004 10:26:46 AM

MAIS DO QUE QUATRO PALAVRAS

Gravura de Van Gogh


Eu perdi um amigo que não conheci. Um amigo que poderia ter conhecido, mas que nunca parei para trocar mais do que quatro palavras sobre futebol ou música. Eu freqüentei o café de sua mãe, Ivone, durante muito tempo até ele fechar. No recanto de seis mesas, conheci minha Ana, promovia rodadas absurdas de expresso com amigos, a ponto de tomar uns cinco em seqüência antes de ir trabalhar. Muito além do lazer, Ivone virou uma extensão do lar, assim como a Marcinha que atendia. Falava de seus filhos com uma ternura incansável: Alexandre era um deles. Recebia relatos atualizados de suas conquistas e pequenas vitórias. Fiquei sabendo que se formou em jornalismo na Unisinos, que se acordava de madrugada para chegar na Rádio Gaúcha, que namorava firme, que era sério e atencioso, que era brincalhão com os amigos, de que não substituía a lealdade por nada que fosse, que amava sua casa. Ivone usava o 'você', herança paulista. Tirava os óculos, já com os olhos enevoados, quando comentava os feitos de sua meninada. Limpava as lentes na camisa. Um ritual repetido. Depois colocava os óculos novamente e voltava a servir os clientes com uma agilidade sonâmbula. Eu admirava aquela família, que chegava como um arrastão em qualquer lugar, todos juntos, seja no teatro, seja nos restaurantes. Alexandre ficava pouco, porque passava a maior parte do dia em Porto Alegre. Ele cumprimentava levantando a cabeça, como alguém que nos pede para ir em frente.


Alexandre morreu na última semana. Tinha 28 anos. Foi derrubado pela leucemia. Desde que descobriu a gravidade da doença em 2002, lutou sem parar, acompanhado da Ivone e de seus irmãos. Nunca o vi em desespero. Encarava o problema como uma pauta difícil. Enfrentou a maratona de hospitais, com a esperança de retornar à rádio. Fez campanha para doadores de medula. Tranqüilizava mais do que era consolado.


Eu não entendo a vida. Densidade não há só na desgraça. Não entendo a vida, que me constrange e fere, que me envergonha, que não me permite voltar atrás, que me deixa sem ação, ridículo, inútil sapato sem outro par, inútil guitarra sem cordas, inútil até para chorar. Sua cotovelada de relâmpago no rio, que muda a direção do curso das águas, sem pedir desculpa, sem consultar o que pretendíamos. Ela complica o que nasceu livre, liberta o complicado, provoca onde existia paz. O ar apunhala como uma faca enferrujada, um vento enferrujado, e são tantas sua tentativas de nos cortar, que um dia a gente abre a guarda. Não, não caminharei mais com prudência, serei mais do que quatro palavras.


A vida pede para que a gente apenas olhe, não a interprete. Se é assim, Alexandre não morreu. Mudou de endereço. Só teremos que nos esforçar mais para enxergá-lo.

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