
Não, não te olho com pena e resignação. Ninguém conheceu teu desprendimento, muito menos a tua ironia. Não saber como te dizer é já dizer. Não queria te contar que te acompanhei até aqui. Poderias não suportar. Não quero que partas e não sei como conter o sangue. Estou de mãos dadas contigo, em outra cama. Escrever é estar em coma. Ainda não tens consciência do acidente de carro e que fiquei exatamente como estás. Não adianta rir de nervoso - a tua situação ainda é pior do que a minha. Aquele caminhão atravessando o sinal fechado e nos tomando de frente. Duas camas de solteiro. Nunca dormimos em duas camas de solteiro. Penso que serão dois lençóis a trocar inutilmente. Duas camas de solteiro não formam uma de casal - é diferente. Um vizinho do outro e minha mão estendida como uma mesa. Uma mesa sem abajur. Os dois em coma, vegetando como animais apaziguados. Animais brancos, pálidos, longe de suar, avessos ao mormaço do mundo. Ninguém para contar a história ou dizer o que houve. Escrever é estar em coma. Anota-se o pensamento antes de falar. Toda palavra passa a ter a largura da escrita, não a altura do som. Um pássaro apanhado durante a árvore do vôo. O estranho é que me respondes. Vejo que te escondeste muito bem dentro de mim durante todo esse tempo para sair de repente. Eu te levei junto sem perceber. Devo estar feia, não faço as unhas há semanas, vestindo essa roupa larga de grávida. E pensar que jamais tocaste na hipótese de filhos e aqui vive ladeado de aparelhos, que se assemelham a um parque de diversão. E pensar que falavas que partirias no auge para não ser esquecido rapidamente. E pensar que ao menos não sentes alergia das flores depositadas ao teu lado. Desculpa-me, canso-me com facilidade. Não sei exatamente o teu estado. Meu amor está ficando póstumo.
Beijos
Aline
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