quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/2/2004 10:17:34 AM

ALINE


A gente se encolheu com receio do fim e nos acostumamos com a estreiteza. Tens razão: quando falamos, eu escuto somente minha voz. A realidade é bem menor do que o nosso desejo. Nunca fui de enumerar os dias que vivi, sempre contei os dias que faltam. Não nasci para comerciante e meus balanços não fecham com o saldo. Posso ser classificado de tudo, menos de avaro. Ou será que o generoso é avaro de si? Tu te alegras quando a verdade ultrapassa a explicação. Eu me alegro quando é possível explicar. Meu erro é te ameaçar com fracasso quando pretendes mudar a ordem das coisas. Eu não te deixo mudar, porque me tornei obediente ao medo. Medo de quê? De ser como os pais, de não ser como os pais, de não saber o que ser. Eu forço tuas desculpas pois não sei fazer a culpa dormir, criança difícil, que berra pela mãe e arranha o rosto. Eu não te deixo escolher ou selecionar, negar e vacilar, não te deixo que tenhas a curiosidade maior do que nossa vida. Eu queria que fosses como eu, mas desejo que me libertes. E tu desejas o mesmo: que te libertes. E um olha o outro esperando algo que não será feito. Ninguém tem a coragem de dar um passo fora da dança. Há pessoas que passam uma vida juntas se amando pelo medo mútuo. Na verdade, o amor é o medo. Elas casam para se encerrar, para não ter mais preocupações, para não sofrer com a própria ansiedade. Não, não é o nosso caso. Casar não é desistir da vida. Não devo inventar os mortos de acordo com minhas necessidades. Todo amor é um modesto esforço da infância. Eu sou uma criança que escondeu sua bondade em lugar bem seguro. Tão seguro que nem o segredo me disse onde estava. Como interromper a inocência sem perdê-la? Como manter a pureza se não a sacrificarmos? Ao acordares, tomas o café, misturas com o leite e faz três tentativas com o isqueiro. Não gostas do sabor da tampa do iogurte. Confere se o relógio está funcionando. Quando um conhecido ou teu familiar revela algo que eu não sabia de ti, eu pergunto: por que não me contaste? Recrimino o que ainda é desconhecido, não permito o desconhecido crescer. Eu não vou me perdoar se deixar alguma coisa de ti para saber depois. És mais importante do eu: eu só não vou morrer em ti. Teus cotovelos, teus joelhos, guardam o cheiro de todo teu corpo, sabias?


Com amor,

Fernando

Nenhum comentário:

Postar um comentário