sábado, 31 de janeiro de 2004

CUMPRIDOR DE PÁSSAROS

Gravura de Robert Motherwell


Fabrício Carpinejar


Ele é um cumpridor de pássaros. Cumprimenta as aves e cumpre o que elas cantam. Sua barba já pode ser coçada pelas costas. "Não tiro a barba, é promessa de viúvo." Com farda militar e um lenço no pescoço, briga com a vizinhança, que reclama que ele é a embaixada de ratos, morcegos e baratas no bairro. Vivaldino nutre profunda amizade com roupas rasgadas, insetos, trapos e louças baldias. Montou uma estranha casa em São Leopoldo. Fez uma ponte entre o pavilhão de madeira e a árvore da calçada. Sua morada é aérea, com madeiras e portas velhas. Um formigueiro com paredes amolecidas, aviário remendado. Juntou sobras de material de construção e inventou labirintos. "Quis imitar meu ouvido esquerdo", me confidenciou. Gatos curiosos entram pelos esconderijos e alçapões e não encontram a saída. A janela do sobrado é a porta de entrada. Ele a empurra, desce numa escada de três degraus para um, vence dois metros e chega à sala principal. Usa fósforos para descobrir as gavetas. Visita lembranças com a distância de um astronauta. Enrola cigarro de palha, enquanto sua cadela Branquinha, que só come cebola, se enrosca aos seus pés. Há o quarto da falecida que ele fechou para a eternidade. "Ninguém entra. Joguei a chave fora para não sofrer tentações." A casamata tem chão leve como esponja, umidade de palha prensada. "Eu engasguei a garganta de um pássaro. Não me cuspiu para Deus, não me engoliu para terra." Vivaldino pensa um monte de pedras. Seu ronco não o deixa dormir. "A coisa mais linda que fiz foi deixar um dia de comprar cachaça para levar meus filhos ao matinê."

OBSERVAÇÕES SOBRE VICENTE

OBSERVAÇÕES SOBRE VICENTE NA SALA DE ESTAR DE SEU MUNDO


* Meu filho Vicente, 1 ano, decidiu colar adesivos na porta do quarto, retirando de seus carrinhos. No dia seguinte, ele transferiu as figurinhas para a porta do banheiro. Na quarta, acordou bem cedo e viu que o mundo não estava bom e botou as colagens no armário. Na quinta, a televisão já tinha publicidade avulsa. Na sexta, a pia da cozinha estampava aquelas marcas de veículos. No sábado, ele se viu alfabeto: dormiu com os adesivos na própria roupa. Era a verdadeira porta e descansou.


* Mariana, 10 anos, não mora com Vicente. De vez em quando, a irmã parte com a mãe que não é a dele. Em uma das despedidas, depois de vê-la tomar o trem, abriu o janelão do apartamento e começou a gritar 'mana'. Ele gritava adulto, com convicção, sem querer desistir cedo. Levantava seu boneco e dizia 'vem cá'. Oferecia seu brinquedo como sacrifício.

MÍNIMAS

Gravura de Robert Motherwell


Nenhum pássaro voa

olhando as asas.

JORNAL AMAZÔNIA

Deu no jornal Amazônia, Belém (Pará), caderno Variedades, 19/01/04:



A poesia sempre necessária


Aos 31 anos de idade, ele é considerado um dos mais importantes poetas brasileiros revelados no final do século XX. Para confirmar essa importância, ressalte-se os prêmios que o nosso poeta em questão já obteve: Fernando Pessoa, 1999, da União Brasileira de Escritores (UBE), Açorianos 2001 e 2002, da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre (RS), Cecília Meireles 2002, também da UBE, e Olavo Bilac 2003 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Fabrício Carpinejar, ou simplesmente Carpinejar, como assina o nome, soma não só na pia batismal os nomes de dois grandes poetas, como herdou deles a poeticidade, e aperfeiçou-se no duro lidar com as palavras, essa "luta vã" de que nos falava Carlos Drummond de Andrade.


Filho dos poetas Carlos Nejar e Maria Carpi, Carpinejar reuniu em "[caixa de sapatos]" (Companhia das Letras, 76 páginas, 2003) poemas extraídos de quatro de seus livros já editados. O livro dá uma mostra da extrema concisão e mundividência da qual é rica a Poesia desse gaúcho. Observem:


As solas do sol

pisavam os olhos.


(página 13);


Abandonar o paraíso

a única forma

de não esquecê-lo.


(página 22);


A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.

(página 59)


Podemos acentuar que em Carpinejar a palavra é transfigurada pela pulsação do poeta, pelo sentir dele que, a partir de uma dimensão do sujeito, por sua ótica particular, dá um sentido coletivo a uma experiência singular, a tal "vida que estala uma única vez". Essas descobertas poéticas desse navegador de mil e um mares, que singra sujeito às intempéries da Poesia, são explicitadas pelo uso da síntese que é uma das características do poeta, mas sem deixar que o verso surja insípido, mas sempre eivado de riqueza.


Essa, diga-se, é a singularidade da poética de Carpinejar: sai de si em busca de outrem para compartilhar seu sentimento de mundo.


Alfredo Garcia- Escritor e jornalista.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

NÍQUEL



Gravura de Jean Fautrier


Fabrício Carpinejar


Ela se levantava às 7h e saía a rastejar o olhar pelo chão. Percorria toda São Leopoldo em busca de moedas. Colocava o chapéu da roça e sorria até o meio do sorriso e não terminava o sorriso nunca, na metade ficava e voltava e ria de novo. Já tinha seus 70 anos, mas não se professava em números. O rosto de bolacha maria embebido no café. Bondoso como um hábito antigo. Os tênis de lona, mais meia do que couro. Ela canteava o meio-fio. Não avançava na calçada ou na rua. Intermediária entre os dois mundos. Levava uma sacola de supermercado para ir colocando seus achados. Quando fitava uma moeda grudada no chão, pegava uma espátula e gritava: "Níquel". Parecia levantar pão do forno. "Eu fiquei louca porque me acharam louca", me disse. "Eu fui louca pelos outros, não por mim." Vivia no asilo. Quarto azul como seu leque de missa. Azulava o corredor com suas mechas brancas e definitivas. Colecionava o desperdício dos apressados. Procurava pentes com dentes inteiros. Tinha uma lona de pentes coloridos catados no solo. Havia dois pentes banguelas que não colocou fora para não ser preconceituosa. "Senão vão dizer que não dou valor aos quebrados da vida." Não importava o acúmulo do sol. Ela e seu chapéu de palha faziam curva na sombra. Voltava às 9h. Lavava as moedas e pentes na torneira e subia ao quarto azulado como o leque da missa. No aposento, guardava dez baldes cheios de moedas: cruzeiros, cruzados, reais, recolhimento de suas andanças. "Não ponho no banco, aqui é mais seguro. Moeda não apodrece como o homem", afirmava. Transbordava metal entre o banheiro e o ventilador. "Níquel", ela exclamava. Entrou no asilo aos trinta anos. Confundiram depressão pós-parto com doideira. Em estado de choque, tentou machucar o filho recém-nascido. A família não perdoou. Nem ela se perdoa. "Um dia terei dinheiro para comprar toda minha loucura. À vista."

quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

PORÃO E ÁGUA-FURTADA

Gravura de Raoul Hausmann


Eu queria morar em uma água-furtada, assoalho de Deus. Nunca encontrei um quarto no alto, entre árvore e ave, rente à camada assustada de lago do telhado. Meu avô tinha um porão. Minha casa da infância tinha um porão. A unidade do porão feita de trastes e pertences vencidos, de garrafas, vidros de conserva e peças desativadas, de gaiolas e escadas. Coerência na mais pura desordem. O porão dorme pensando morrer. Um sonetista, vizinho antigo, deixava seus poemas no subsolo da casa. O rosto severo e os olhos aflitos, como moscas transtornando a pele. Ele escrevia, não lia, tirava com raiva a folha da máquina, descia a escada e botava o poema lá embaixo como um jornal do dia anterior. Eu perguntava os motivos do desprezo: "minha literatura é pior do que fazer tricô. Não serve para ninguém vestir depois". Viveu inédito até para sua esposa.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

RELÂMPAGOS

Gravuras de Raoul Hausmann


O poeta Konstantino Kaváfis dizia que a mentira era a velhice da verdade. A mentira é a juventude da verdade. Ela se entrega pelo ímpeto desmesurado, pela ambição de ser maior do que sua origem. Fica decorativa se não apresentar uma ligação com a vivência. Eu não gosto das coisas diretas, das conversas diretas, dos amores diretos. Não confirmo as datas das lembranças, nem coloco o ano e o lugar debaixo dos poemas. Estou fora de mim faz tempo. O que foi imaginado aconteceu. Minha experiência acontece antes de acontecer. Tinha um amigo que só tirava fotografias do lado esquerdo. Afirmava que ficava menos feio. Irritava-me sua postura sempre de lado nas imagens. Eu sou o lado direito da fotografia, a carnação da cor, uma cor pastando, desajeitando sua textura com outra tonalidade. Minhas pupilas aparecem vermelhas e não se entregam sem desafiar o foco. Eu não me entusiasmo com a literatura. Eu me entusiasmo com a falta da literatura. Escrevo a falta da literatura. Quem se exulta demais com o que faz é servo da memória. Talvez a vida seja muito mais o que a gente nega do que aquilo que se afirma. Negar é aceitar que ainda não nascemos, assim como estilo é quando o corte não dói mais, assim como a morte impede o homem de ser superficial. Não conto segredos sem receber segredos em troca. Trocar segredos é mentir acompanhado. Eu admiro os relâmpagos. Essa luz dada de graça nas paredes do quarto com rádio dentro.

terça-feira, 27 de janeiro de 2004

FÉRIAS DAS FÉRIAS



Gravura de Raoul Hausmann


Fabrício Carpinejar


Entrar de férias é não entrar de férias, é se preparar para as férias. Teria que se tirar férias só para depois entrar de férias. A gente se acorda no primeiro dia e vai se esforçando para se adaptar aos novos horários sem horários, com pouco discernimento para diferenciar a preguiça da indolência. E dorme mais do que devia e deixa para fazer o que se pretendia no dia seguinte. O segundo dia repete o primeiro e as férias vão passando e a aflição que ela termine aumenta. O início do descanso começa a virar o final premeditado dele. Passa-se todo ano esperando essas quinzenas gloriosas, onde tudo acontecerá como planejamos. Imagine a ansiedade, a expectativa, a esperança depositada entre os dois fachos de datas? Não fazer nada significa que pretendíamos fazer tudo o que não se podia ao longo de doze meses. É quase impossível abarcar esse universo de distrações e adiamentos. Muita repressão para se resolver em quatro semanas. Tenta-se mudar os costumes, mas em cada mudança surge uma atrapalhação e o que aspirava à eternidade parece agora patético. Se digo que irei escrever um livro, custa-me encontrar o primeiro parágrafo. Se digo que irei sestear na praia ao som do mar, encontro vizinhos que deixam o som do carro ligado no máximo volume. Como a transformação dos hábitos piora a personalidade, retorna-se à comodidade dos antigos, perdurando o vício das mesmas tarefas.


As férias são rápidas, efêmeras. Elas não acontecem, desacontecem. Carrega-se o período com excesso de ritual que a espontaneidade se degenera em afetação. Fica-se extremamente suscetível. Uma casa com chave para fora. A paranóia faz com que se procure a incomodação como pretexto para adiar e justificar as promessas não cumpridas. As contas permanecem povoando a correspondência, com datas díspares e alheias ao sono. É necessário encontrar um lugar para o cachorro. Dar um jeito nas plantas. Antecipar dois meses. Dobrar as horas. Livros destinados para a levitação pesam nos braços e não há silêncio suficiente para atravessá-los. Passar filtro solar nos filhos é uma arte milenar, que exige meditação e desprendimento. Como a imaginação não é a realidade, uma porção de frustração se infiltra no comportamento e mina o que poderia ser agradável. Ao planejar as férias, não programamos doença, cansaço, intriga, brigas, desentendimentos.


Férias têm sido sinônimo de egoísmo. O tempo que se tira para si quer excluir os outros, o que é impossível. O mundo não pára porque não se está trabalhando. Coloca-se na mala o que a gente queria fazer escondido para fazer às claras. Qualquer alteração do percurso é vista como afronta. Há de se compreender que férias são o tempo que se tira de si para ouvir finalmente os outros. Na verdade, passa-se o ano inteiro preso naquilo que a gente quer. Férias significa algo como se despossuir.


Acumular as férias é acumular a vontade de lazer. Lazer acumulado é tensão. É como se pairasse no ar a obrigação de ser feliz. Obrigação não é prazer. O prazer se converte em culpa. Procuramos nas férias os dias úteis quando o correto é se deliciar com a inutilidade dos dias. O erro é tratar as férias como extensão do cotidiano, com tarefas e objetivos a cumprir. Tarefas viram deveres. Deveres viram trabalho. É um momento para procurar aquilo que se desconhece, arriscar novos sinais, despistar os comandos. É uma trégua para se inventar mais do que repensar. Férias são sagradas, mas se recomenda profaná-las durante o ano para não sobrecarregar o desejo. Nunca depender de sua salvação em uma única prestação. Até porque a salvação não marca hora como um médico. Ócio criativo é apenas uma desculpa para trabalhar no final de semana. Prefiro o ócio destrutivo: levar a casa para a exuberância dos improvisos.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

DEPOIS

Gravura de Joan Miró

Da série Minha infância não atravessa a rua sozinha


Quando criança, a eternidade era deixar acesa a luz no corredor enquanto se dormia. A paisagem mais banal se contorcia e se assentava. Nas escadas e casas antigas, se havia uma inscrição em pedra, urgia tocar, desvendar a porosidade das letras. Raspar a poeira da laranja. O sol envelhecendo. Ficar assustado com o pólen dos tapetes estendidos no varal, como fantasmas se agigantando do sono. Os beijos não eram tão apressados. As roupas não causavam inveja. As janelas faziam barulhos para abrir. Eu acreditava no que via na tevê, no jornal, no final de semana. Eu acreditava no amor quando minha vizinha colocava batom. Escavava o tempo, o pátio, o trinco, os vãos das paredes, os sapatos, os cintos, os armários. Cada brinquedo era uma ciência. Um gafanhoto no vidro e um furo na tampa era uma ciência. Havia algo para procurar no fundo de cada coisa. Algo para me entreter fora de mim. Depois comecei a morrer no escuro, depois comecei a me esquecer no escuro, depois o tempo começou a me escavar, depois escureci, depois penso tanto em mim que não me procuro, depois apenas espero o depois.

NO GUAÍBA



Gravuras de Iberê Camargo


Fabrício Carpinejar


A luz como uma tecelã cortava as unhas da grama, trançava os fios do cais, aproximava os telhados. Não havia a pressa da carne. A noite da pressa. Os pintores De Chirico e André Lothe estavam no outro extremo da margem, inertes, com a caspa do rio aos ombros. "Por que não fala com eles?", perguntei para Iberê. Suas sobrancelhas cresciam ao pensar. O paletó azul combinava com o cheiro adocicado do rio Guaíba. "Aqui rasga-se o som em um gesto e demora uma vida para refazê-lo." Ciclistas pedalavam em torno dele. Em voltas rápidas, inclinados. Iberê abriu sua caixa de ferramentas como a de um marceneiro: retirou cordas, pincéis, carretéis, bobinas, elásticos de calças. "Deformar a matéria é deixar a matéria retornar a sua forma original antes do uso. Não podemos deformar em excesso, senão parece mentira. Junto os cacos cuidando para que cada peça não perca a individualidade da queda.". Iberê apanha o chapéu para despistar o sol. Suas unhas estão sujas de tinta. "Já percebeste que as tintas têm a mesma textura do excremento das aves?" "Não", respondi para ele continuar. "A pintura nada mais é do que o estômago de um pássaro." Em um tom grave, incomodado com a ronda dos ciclistas, toco no braço dele: "Por que não avançaste na morte?" Ele solta uma gargalhada: "Morte? Deus anda distraído."

TEOLOGIA

Gravura de Miró


Minha filha Mariana questiona o surgimento de Adão: "como pode um homem sem infância?"

sábado, 24 de janeiro de 2004

CONTE-ME OS FINAIS DOS FILMES

Gravura de Cy Twombly


Fabrício Carpinejar


Conte-me os finais dos filmes, eu não me importo. Eu esqueço os finais dos filmes. Nunca guardo o que acontece no enlace. O final do filme é o menos importante. Não entendo como embaralho os finais como se fossem começos. Minha memória não é fotográfica, ela corre a letra e não me entendo depois. O que eu fiz com os finais dos filmes? Os livros me influenciam e não me deixam concluir. Não posso concluir o que adivinho. Eu transformei os finais dos filmes em livros que não escrevi. Gosto que me digam o final antes de assistir o filme. Eu vou esquecer assim que assistir. Conte-me o final de minha vida, eu não me importo. Ciganas, fadas, bruxas não me apavoram. Não vai mudar o que farei. O final da vida não altera meu endereço. Não altera a fome que havia na vida. O ácido da boca. A hortelã da boca. O susto de estar errado. O acerto inesperado. Não vai alterar a ordem da rotina, a ordem da minha higiene: se tomo primeiro o pente, depois a navalha, depois a escova, depois o cortador de unhas. Não vai alterar minha dieta, minha receita médica, a cor de minha língua. Não vai alterar as sete quadras que atravesso para chegar ao banco, o modo de discordar da luz. Não vai alterar o cheiro da grama com a chuva. A impureza dos ouvidos. Não vai alterar a reposição da aguardente no bar. O suor das árvores. A manchete do jornal que não lerei. Conte-me o final do livro. Não vai alterar o desejo feito de começos. O começo do desejo no desejo. As tardes lentas do domingo. Os cabelos lentos da filha. Não vai alterar o modo como viro a página, o modo como troco de assunto. Não vai alterar a floresta reduzida a um ninho. O ninho reduzido a uma asa solteira. Não vai alterar a evaporação das uvas. O número de amigos. Não vai alterar o horário das missas, dos cinemas, do nascimento. O final do livro não vai alterar o autor e sua insuficiência. Não vai alterar o que não se enterra no final.

EU VI

Gravura de Cy Twombly


Fabrício Carpinejar


Viver não é obrigação. Lembro de um relojoeiro que adiantava três minutos de cada relógio de seus aposentos. Ele chegava na mesma hora em todo canto da casa. Os olhos miúdos - difícil definir o tamanho atrás dos óculos de garrafa verde. Eu usava cacos de garrafa verde para queimar formigas. O sol sentava no vidro e dispersava o formigueiro. Viver não é emprego, ele ralhava. Eu decorava meus vizinhos pelas frutas dos pátios. Roubava bergamota, laranja, carambola, pitanga, amora. Não recomendo minha idade, ele xingava. Eu me conheci tardiamente. Podia ter me adiado mais. A noite é faladeira, por isso que sentimos sono. O dia não, o dia escuta, sábio e severo. O dia não imita a criança. A pior coisa é adulto imitando voz de criança. Adulto acredita que ganha a confiança de criança como um idiota. Viver é escolha, dizia o relojoeiro, com as pupilas adiantadas três minutos, tempo necessário para atravessar os óculos de garrafa verde.

EU NÃO VI



Gravura de Cy Twombly


Fabrício Carpinejar


Eu não queria ir, me acordaram cedo. O frio da campanha pesava mais do que o poncho. As pernas não achavam o ritmo, enxadas ainda novas. Os pés pesados, chumbosos, estranhos. Como galos rubros martelando a geada, procurando desesperadamente a terra. Eu não queria ir, mas o estábulo estava escuro, um escuro doméstico, atravessado de sons e sinos, feno e sacas. Precisava provar que era homem. Menino ainda pensando que era cedo para saltar de si e dos lençóis roucos. Eu queria dar nome ao boi. O peão me disse que nome demora a vida. Eu não queria ver. Eu vi arrancarem os olhos do boi. Não queria ver. Vi onde parte o jorro dos olhos do boi. O que tinha o boi de paisagem pastada. O capim alto das veias. O capim enegrecendo as veias. O capim emagrecendo as veias. O capim queimado da passagem dos olhos do que foi o boi. A ardência de dentro para fora, o berro de fora para dentro. O capim e o pescoço. O capim faminto. Não queria ver. Vi o que não queria ver. O boi e os galos rubros martelando a geada, procurando desesperadamente a terra. Os olhos da terra.

NA PRAIA

Participo da 3ª Feira do Livro de Tramandaí (RS), que começa no sábado e vai até 8/2, na Praça Leonel Pereira, em evento organizado pela Secretaria Municipal de Cultura da cidade. Faço palestra sobre a antologia Caixa de sapatos no domingo (25/1), a partir das 19h30, com entrada franca.

REVISTA CARTAZ

Deu na Revista Cartaz, Ano IV, Nº 12, dezembro/2003 e janeiro/2004:


Literatura


Agricultor de violinos

O poeta Fabrício Carpinejar escreve com o vigor de quem escava palavras para fazer brotar música


Christina Lima e Paulo Vasconcellos

Foto de Renata Stoduto/divulgação



O trabalho do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar é quase de destruição. Um esforço tenso para que os versos não resistam, até que o texto não possa esconder mais nada e a palavra se transforme em assobio, em estranha melodia difícil de apagar da memória. Quase como um agricultor de violinos. "A caneta é minha pá", diz.


A produção do poeta é celebrada pela crítica desde a estréia com o livro As solas do sol, em 1998, lançado pela editora Bertrand Brasil. Os elogios continuaram louvando a qualidade das metáforas de Um terno de pássaros ao sul, de 2000, Terceira sede, de 2001, e Biografia de uma árvore, de 2002, todos publicados pela editora Escrituras.


A celebrada antologia Caixa de sapatos, editada neste ano pela Companhia das Letras, vai pelo mesmo caminho. Aguarda-se ansiosamente Cinco Marias, que já está no prelo para ser lançado em abril.


O sobrenome artístico veio da fusão de outros dois não menos famosos: o do pai, Carlos Nejar, integrante da Academia Brasileira de Letras, e o da mãe, a também poeta Maria Carpi. O rosto alongado, estranho, aparentemente triste, às vezes lembra uma figura de El Greco. "Me descobrir feio me libertou", diz Fabrício Carpinejar sem nenhuma autocomplacência. "Eu não tinha mais nada a perder. O feio é deliciosamente inconseqüente."


O poeta, nascido em Caxias do Sul, na região serrana gaúcha, hoje mora em São Leopoldo, cidade que instituiu o Prêmio Carpinejar de Literatura, com a mulher, Ana, os filhos Mariana e Vicente, e procura fugir ao estereótipo de que poesia deve inspiração à boêmia. "Um domingo em família é melhor do que a eternidade. Até as brigas são engraçadas e insubstituíveis."


Em Caixa de sapatos, releitura dos textos retirados dos quatro livros anteriores, Fabrício Carpinejar modificou todos os poemas e deu-lhes um certo frescor de ineditismo. Para isso, foi preciso abrir mão dos desdobramentos do enredo, característica da literatura de Carpinejar, já que os livros contam em versos a saga do personagem Avalor e suas ramificações no mundo.


Desconectar os poemas do eixo ficcional não chegou a incomodar o autor. Carpinejar aprecia mudanças. "Muitas vezes, recuar é avançar", teoriza. "Refiz versos, mostrando que um poema nunca está pronto mesmo depois de publicado. É sempre inacabado."


INFÂNCIA X VELHICE



O convite da editora coincidiu com o desejo de rever o percurso. É numa caixa de sapatos - onde um relógio velho, fotografias, cartas e moedas antigas nos visitam e nos impedem de esquecer - que Fabrício reúne seus poemas conforme uma particular escala de intensidade emotiva. No fundo desse pequeno santuário de lembranças, encontram-se até as pedrinhas que completaram na infância um jogo de cinco marias, título do próximo livro.


Cinco Marias é um novo capítulo a partir de Biografia de uma árvore. A obra traz a história da família de dr. Ossian, médico que julgou louco o personagem central das histórias. Nesse livro, cinco mulheres (a mãe e suas quatro filhas) roubam a cena e revezam suas vozes. "Não entrego quem é que está falando, o leitor descobrirá pela atmosfera, pelo temperamento", adianta Fabrício. Como o jogo cinco Marias, as pedras/vozes vão trocando de lugar, até que todas se reúnem no final.


Dos tempos de criança, Fabrício sempre colhe experiências guardadas num reservatório de miudezas e de brincadeiras antigas. Terceiro de quatro filhos, enfrentou a separação de Nejar e Carpi conversando com as roupas no armário do pai. Período sofrido exposto em Um terno de pássaros ao sul.



No poema Os viventes, o pai-poeta vira personagem para a pergunta: "O que procuravas em minhas roupas, o instinto de me sobreviver?" Em um dos fragmentos do segundo livro, Carpinejar diz: "Fiz fretes de obras na estante: mudava os títulos de endereços em tua biblioteca e rastreavas, ensandecido, aquele morto encadernado que ressuscitou quando havias enterrado a leitura, aquele coração insistente, deixando atrás uma cova aberta na coleção".


"A infância nunca está encerrada e a velhice é uma outra infância, em que o excesso de imaginar é substituído pelo excesso de memória", afirma o poeta. Em Terceira sede, o narrador, com 72 anos em 2045, faz o inventário de uma vida de solidão. "Conforto-me em ser apenas homem/ Envelheci, tenho muita infância pela frente".


O ano de 2002 tornou-se especial no calendário do poeta, que concluiu mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com a dissertação A teologia do traste na poesia de Manoel de Barros em contraposição à psicologia da composição de João Cabral, e lançou o festejado Biografia de uma árvore, elo importante na cadeia iniciada em As solas do sol.



Biografia de uma árvoreconquistou, neste ano, o Prêmio Nacional Olavo Bilac de melhor livro de poesia de 2002, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Nele, o protagonista clama: "Não me perdoes, Deus/ Não me esqueças/ O esquecimento jamais devolve seus reféns. // A claridade não se repete/ A vida estala uma única vez."


São versos escritos com caneta, mas escavados com pá até formar a estranha melodia que Fabrício Carpinejar busca em todas as suas obras. Trabalho de um agricultor de violinos.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

CASA DO DIABO



Gravura de Frida Kahklo


Fabrício Carpinejar


Ainda quero ser contemporâneo de minha alegria. Não precisar voltar para criar o que não existiu. Na primeira reforma da casa de minha infância, destruíram as paredes. Abriram um valão no pátio. Entre os encanamentos e a terra vermelha, fazíamos competição para atravessar o inchaço da chuva. Os chinelos azuis e amarelos funcionavam como barcos. Córrego de lâmpadas na chuva. Os homens derrubaram o abacateiro naquele dia e comecei a andar encurvado. Minha altura era mais dele do que minha. Havia um poço artesiano no pátio. O poço tinha mais barulho de água quando secava. O meu irmão me dizia que o pinheiro do vizinho era a casa do diabo. Arredava o pé daquela zona. Eu acreditava muito no que meus irmãos diziam. Tanto que não me desmentia. Durante uma semana, moramos em um hotel na própria cidade até terminar a casa. Ficamos no Majestic, hoje Casa de Cultura Mário Quintana. Na chegada, admiramos uma banheira enorme, branca. Minha irmã mais velha falou que parecia o lugar onde Jim Morrison morreu. Não sabia quem era Jim Morrison, mas não queria tomar banho. A casa do diabo passou a ser a banheira branca. Eu me sentava quando a dor do lugar era intensa. A dor fica de pé quando sentamos. As tolhas enormes serviram para me enrolar de múmia. Faltavam cobertores nas noites altas. Nas manhãs, sem nada para destruir, buscava latas para queimar folhas no terraço. Minha maldade escolhia alguns insetos para o sacrifício. O fogo era um peixe retirando suas escamas. Eu ainda tenho escamas antigas. Uma criança nunca suporta que uma ferida cicatrize inteira. Mexe até sangrar. Um adulto nunca suporta que uma lembrança cicatrize inteira. Mexe até sangrar. Minhas mãos estalam como ervas. Queria estalar os dedos com barulho. Ao longo da vida, não parti, apenas me desloquei. Eu acumulo coisas e trastes, jornais e revistas durante anos. Guardo como se a despensa fosse um museu. De repente, jogo tudo fora sem compaixão com o esforçado zelo. Eu não acumulo minha sobrevivência.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

NÃO ACREDITO EM QUEM NÃO SE DESACREDITA AO MENOS UMA VEZ

Gravura de Andrew Wyeth


Fabrício Carpinejar


Não acredito em quem confia demasiado em si. Quem nunca extravia a conversa, o jeito da vida, o sentido. Quem nunca se duvida antes de rezar. Quem nunca reza para se distanciar. Quem nunca desistiu de procurar termos no dicionário. Quem nunca se endivida antes do salário. Quem nunca perdeu uma amizade por uma palavra a mais, um amor por uma palavra a menos, uma leitura pela falta de insistência. Não perdeu o emprego, não perdeu um parente, não perdeu a paternidade de si mesmo. Não acredito em quem fala dos outros com convicção, com domínio e técnica, com destreza de faca e agulha. Não acredito em quem não se critica, não se perdoa, não volta atrás. Não acredito em que se julga maior do que a própria vida e se submete às comparações para subir a estima. Não acredito em quem não consulta a meteorologia para apenas constatar que não choveu na noite seguinte. Não acredito em quem enxerga a literatura como uma religião, os livros como mais importantes do que os filhos, os autores como deuses inquestionáveis. Não acredito em quem não se encolheu ferido, derrotado, acuado, mínimo. Não acredito em quem não tem fé para atravessar o rio a nado. Não acredito em quem não considera a possibilidade de fracasso. Não acredito em quem não lê os obituários na velhice. Não acredito em quem não revê suas fotos para se espalhar. Não acredito em quem capricha na letra. Não acredito em quem não modifica sua infância ao avançar. Não acredito em quem não esquece a data ao preencher o cheque. Não acredito em quem ultrapassa o sinal fechado sem medo. Não acredito que o submisso no trabalho não é estourado em família e que o estourado no trabalho não é manso em casa. Não acredito em quem não recusa ao menos três frutas antes de escolher. Não acredito nas verdades que não são mastigadas em silêncio, na arrogância que fala com a boca cheia. Não acredito em quem não olha para sua mulher e teme não merecê-la. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de trabalho. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de família. Não acredito em quem não passa numa praça ensolarada sem querer sentar. Não acredito em quem não vacila, não se desespera, não prensa o pulmão contra a parede de um relógio. Não acredito em quem professa ensinamentos com indiferença. Não acredito em quem mendiga culpados para sua raiva. Não acredito em quem usa chapéus dentro de casa. Não acredito em quem não foi deserdado em algum momento e fez das ruínas seu começo e seu final. Não acredito na literatura que não seja desconfiança. Não acredito que o desejo possa se repetir. Não acredito em quem não tem receio da morte. Não acredito, confesso que não acredito muitas vezes por dia.

RESUMO DOS OLHOS

Gravura de Joan Miró


Fabrício Carpinejar


Eu definia as pessoas pelas suas sobrancelhas. Na infância, não era de enxergar formatos e figuras entre fileiras de nuvens e tapume de estrelas. As sobrancelhas me resumiam. Sobrancelhas falhadas davam uma noção de temperamento triste, introvertido. Sobrancelhas emendadas passavam um sinal de arrogância. Sobrancelhas grossas, como um cavanhaque, demonstravam indecisão. Sobrancelhas pinçadas mostravam dupla personalidade, o que não é ruim. Sobrancelhas com um leve traço de nanquim prometiam humildade. Sobrancelhas que contornavam metade dos olhos figuravam como teimosia. Sobrancelhas direcionadas para os ouvidos revelavam generosidade. Desenhava sobrancelhas em meus cadernos. Uma sucessão delas, como um alfabeto invertido, papel vegetal. Nos rostos, adivinhava guarda-chuva, foice, travesseiro de penas, corrimão, caixa de música, secador de cabelo, bumerangue. Cortava a grama de casa pensando estar jardinando sobrancelhas. Na espera do barbeiro, com as revistas velhas e ressequidas de suor, cronometrava a tomada de espelhos e descobria que a mudança de corte não diminuía a personalidade das sobrancelhas, não abafava seus segredos, não camuflava as intenções. Podia-se raspar a cabeça, mas as sobrancelhas ainda denunciam a verdadeira identidade. As samambaias imitam as sobrancelhas. Os cães e gatos respeitam os donos segundo suas sobrancelhas. Ler as sobrancelhas é como estudar a caligrafia. A sobrancelha é uma assinatura espontânea, de mão trocada. Quando não entende algo, ela sobe o degrau. Quando entende, ela deita. Tanto que eu escrevia errado a palavra: sombrancelhas. Demorei a entender que ela não fazia sombra nenhuma.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2004

OS OSSOS DE MINHA MÃE



Gravura de Escher


Fabrício Carpinejar


Era uma neblina chuvosa, mais noite do que a noite. Tomava um ônibus de Santana do Livramento de volta para Porto Alegre. Meus pés tremiam. O vento vinha de dentro da carne. Golpeava a pele como uma vidraça. Conferi meu lugar numerado - 29 - e sentei ao lado de um homem grisalho, segurando um saco de lixo. O ônibus cheio não permitia escolha. O passageiro tinha um tufo estranho no rosto, a barba desarrumada, bem mais alta de um lado do que do outro. Usava um terno cinza, de corte antigo. O lustro dos sapatos apagado por uma camada de lama seca, como quem entrou feio em um banhado. Eu estava longe da janela, o que não me dava posição de enxergar a movimentação da estrada. Não havia ninguém para me despedir, ninguém para acenar na janela. A luz de leitura foi logo bruxuleando, soluçando nos corredores até encontrar a paz líquida do escuro. O homem na faixa dos cinqüenta anos segurava firme o saco de lixo. Não trazia nenhuma bagagem, mala. Somente um saco de lixo preto de 50 litros. Ele me olhava como quem já iniciou a conversa em pensamento várias vezes e recuou por falta de atenção. Ao invés de falar, tossia e voltava ao posto de guarda das mãos. Meia hora do trajeto e ele tentou travar uma conversa desnecessária: "Nunca vi uma noite tão fria". "Sim", respondi e me calei, mais preocupado em encontrar uma posição para dormir. "Minha mãe me telefonava, mesmo eu casado e com filhos, para ver se eu estava de casaco", disse, indiferente a minha indiferença. "Ela nunca me viu como um homem feito, mas como uma criança antes de ir para escola. Nenhuma mulher a satisfazia, sempre tomava meu lado mesmo quando não tinha razão. Por que toda mãe se preocupa demais? Será que depois de morta ela ainda não fica tranqüila comigo? Será que ela está satisfeita?" Não havia como parar o fluxo, acalmei com uma brincadeira: "Minha mãe nunca está satisfeita e isso me tranqüiliza." Não surtiu efeito. Ele prosseguiu: "Quando pequeno, ela me levava no colo de Santana do Livramento à capital. Não pagava duas passagens, era caro. E eu queria a independência de ter uma poltrona minha e não conseguia convencê-la. Agora eu a carrego no colo. Que ironia!" Não escutava as palavras, como uma canção de ninar, mas a atenção flutuante apanhou com nitidez a última frase. Perguntei: "Como assim, no teu colo?" Catou o lado inverso das pupilas, vi que era vesgo e completou: "Não quis gastar com a remoção dela para o cemitério de Porto Alegre, onde está enterrado meu pai. Muito caro. O cemitério me deu os ossos neste saco de lixo para colocá-la ao lado dele. São leves. Os ossos de minha mãe são leves. Parecem ossos de pássaros. Faz sete anos que morreu". Ele começa a chorar meio desajeitado, engasga novamente na tosse, e eu me encolho de medo diante das cinco horas que faltam da viagem.

OLHO MÁGICO

A fotógrafa Renata Stoduto é uma das selecionadas em concurso da Câmara Municipal de Porto Alegre para expor a série inédita de imagens "Observoando" (o título teve como inspiração verso do poeta português Valter Hugo Mãe). Concorreram 79 artistas. Dezenove mostras, incluindo artes plásticas e cartuns, foram escolhidas para ocupar o espaço cultural da Câmara em 2004. É aguardar para observoar cenas como essa acima.

terça-feira, 20 de janeiro de 2004

A PRIMA DA MOSCA-MORTA

Fabrício Carpinejar


na política, é gasta a expressão caiu a máscara. panfletos de última hora costumam tentar desmoralizar a partir unicamente da confusão. nada de dados, fatos e provas. insinuações. a maldade unicamente insinua. não é capaz de ter sobrenome ou endereço. o porta-voz da agressão também não costuma ter sexo, mas se dispõe a atuar em raiva desorganizada, laranja recusada tanto pelos insetos como pelo sol, tanto pela boca como pelo caroço, projetando fora o que está apodrecido dentro. "minhoca invejosa" é um termo bem simpático para definir essas criaturas escuras que não se suportam sozinhas. tentaram atingir o grau de maldade das cobras, mas não têm talento e arte para administrar o veneno. são minhocas que não "arejam a terra", como sugere o grande Manoel de Barros. são minhocas usadas como iscas para perecer no interior dos peixes, com uma cultura feita para isolar e agredir, nunca somar e compreender. uma cultura egoísta e enciclopédica, inútil e ligeira, que desce ao final com a urina. uma cultura que fala e não escuta. a covardia da minhoca está em não apresentar seu trabalho, mas apenas boiar no trabalho dos outros. no lugar dos olhos, encontram-se aspas. como ela não consegue fazer nada, ela tampouco deixa os outros fazerem. pretende instaurar a democracia da mediocridade, sob alegação de uma crítica consistente. é severa com os outros, desde que anônima, excessivamente tolerante com suas falhas, desde que anônima. passa o dia inteiro catando a próxima vítima até chegar seu próprio dia. exercita o ócio dos defeitos. a minhoca invejosa teme a sensibilidade, não pode se emocionar, prefere textos-cabeças de minhoca, se acostumou com o mau hálito de sua voz, indecisa entre sair e entrar na adolescência. a "minhoca invejosa" é prima da mosca-morta. diferente de sua prima que se finge de morta para passar bem, ela está efetivamente morta e se finge de viva. não lê, exuma. não lê, se enterra. não lê, acumula detritos e sucatas.


assim intelectuais aparentemente inofensivos se tornam agressivos em bando. lincham autores que nada fizeram, sob o escudo de uma torcida de futebol ou de um lista de discussão, e depois voltam para casa, desobrigados com o destino, a segurar suas crianças no colo.


só que a poesia não é política. não se está votando quem é o melhor ou o pior, não se está numa monarquia ou no extinto Chacrinha para procurar alguém ao trono. o leitor não quer saber nada além de seu instinto, de sua fome ancestral, em converter o dia em um ventre menos estreito, em uma parede menos áspera. quer desaprender os costumes. a minhoca invejosa pensa que fala por todos. quem fala por todos fala por ninguém. quer explicar ou teorizar sobre aquilo que não foi vivido, mas não adianta amansar o mar com explicações. o mar fala arrombando a si mesmo, destroncando o osso de sua própria altura. quem vive alcança a metáfora. quem não vive vai praguejar, ofender, amaldiçoar, pregar suas verdades como versículos numerados. quem não vive vai gritar sem conseguir convencer ao menos o corpo. a intolerância tem apressado a cadeia alimentar das minhocas. ou partimos para a solidão em grupo (o pior dos isolamentos) ou respeitamos as diferenças e tentamos entender a mensagem que não foi escrita pela vaidade de nossa letra. pela lógica, há mais lugar fora da cova do que dentro dela. apenas a minhoca defende o contrário.


a poesia brasileira precisa de algo extremamente simples: confiança, estima, fé. não aceitar mais que se diminua um espaço de linguagem que já é reduzido com raiva e antropofagia. não cair na cilada arrogante de classificar e dizer quem é superior. ao invés de insuflar o ódio entre os poetas, apresentá-los, diminuir as cercas, aparar o limo da escada, dar ao verso a possibilidade de dormir fora de casa.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2004

O QUE UM HOMEM QUER?

Fabrício Carpinejar


O homem não quer nada, quer descobrir o que quer no meio do caminho. O homem não quer ser elogiado em excesso, senão pensa que é deboche. Quer dormir por nocaute, não por escolha. Quer viajar o suficiente para não voltar a ser ele mesmo. O homem quer chamar atenção em público, ficar quieto a dois. Não quer o meio-termo. Quer falar mais do que devia, calar mais do que podia. Não quer se explicar quando está errado. Quer ser explicado quando está certo. Quer magoar sua mulher criticando a sogra. Quer se magoar provocando ofensas. Quer concordar para resolver depois. Quer surpreender com o número errado. Quer ter a razão quando falta o desejo. Quer jantar com calma, almoçar rápido. Quer o passado perto como um abajur. Não quer mistérios, quer segredos para contar aos amigos. O homem quer um violão para esconder suas dores. Quer sair para poder voltar. Quer conversar de noite para diminuir a culpa. Quer uma gaveta para amontoar a infância. Quer mostrar disposição quando está cansado. Quer consolar para evitar o choro. Quer sexo quando fala em amizade, quer amizade quando fala em sexo. Quer se duvidar ao extremo para se confirmar em seguida. Quer pescar para mostrar paciência. Quer o emprego do outro, o prato da outra mesa. Quer fingir que sabe o que não entende. Quer entender durante a conversa. Quer fazer sofrer o que ainda não sofreu. Quer chorar e soluça. Quer amar sem começo. Quer casar sem papel. Quer ter um confidente para não se trair. Quer rir alto sem trocar a marcha. Quer usar suas roupas até gastar. Quer ter seus lugares prediletos. Quer privacidade em banheiros públicos. Não quer ser convidado a carregar peso. Quer dançar sem comentários. Quer beber sozinho sua ressaca. Quer escutar seu nome para voltar ao papo. Quer jogar futebol para diminuir a idade. Quer se contestar quando não há dissidências. Quer a última palavra. Quer ser desejado por vaidade. Quer a fama ainda que seja mentira. Quer chegar atrasado para não ficar esperando. Quer esperar na porta para não se arrumar. Quer fingir pressa para não desabafar. Quer pular o domingo. Quer se arrepender do que não fez. Quer ser esquecido do que ser vagamente lembrado. Quer que a mãe não conte suas manias e apelidos no jantar de família. Quer iniciar o que não terminou. Quer interrogar o próprio ciúme. Quer desistir das expectativas. Quer expectativas para não desistir. Quer receber visitas na hora errada. Quer telefonar para não dizer nada. Quer amar os filhos como se fosse um filho. Quer ser pai de seu pai. Quer orar nos ouvidos do mar. Quer ser ilegível para deixar dúvidas. Quer morrer de mãos dadas. Quer viver sem trégua. Quer adivinhar sua mulher pela respiração. Quer a aparência de uma aventura. Quer disciplinar a chuva. Quer ter uma árvore para atravessar o rio. Quer transformar seu dever em direito. Quer enganar sua fome. Quer escrever para não publicar. Quer arrancar os dentes do relógio. Quer esticar o elástico da terra. Quer reservar os olhos como uma mesa. Quer ser a paisagem da cidade durante o dia. Quer dominar seus impulsos. Quer se reconhecer na neblina. Quer seguir o rio que secou. Quer se aquecer no que não tem significado. Quer se sentir inteiro ao desfazer a bagagem. Quer dobrar o sol como uma carta. Quer que a água continue seu cabelo. Quer recuar para se repartir. Quer avançar para se repetir.

domingo, 18 de janeiro de 2004

O QUE UMA MULHER QUER?

Fabrício Carpinejar


Uma mulher não quer que o homem fique perguntando toda hora o que ela quer. Ela não quer ser definida, mas compreendida. Não pretende discutir relacionamentos no fim da noite, mas os filmes que ainda vai assistir, as expressões que ainda vai aprender. Uma mulher escolhe inúmeras vezes a roupa não porque é volúvel ou tem dificuldades de decisão, mas para ver seu corpo em seqüência. As roupas são o espelho, o espelho não é o espelho. O que a mulher quer está longe de significar um controle remoto, ela deseja que seus ouvidos sejam rezados com insistência, em voz e vela baixas. Ela deseja que o homem adivinhe seu desejo. Que fale palavras rudes com ternura, que fale palavras ternas com violência. Que a paixão seja inventada, não datilografada em sinais e segunda via. Porque quando uma mulher goza sai de seu corpo, o homem fica em seu corpo a assistindo. O que um mulher quer é visitar a mãe sem medo da mãe. Falar com o pai sem medo do pai. A mulher quer a inocência do medo da infância. O que uma mulher quer é uma piada que a faça rir bonita, não uma piada que a faça rir de qualquer jeito. O que uma mulher quer é que o homem feche a porta de noite para ela abrir de manhã. Ela quer ter um filho para não se matar de amor por uma única pessoa. Uma mulher quer a esperança de não ser ela, ao menos mensalmente. Ela quer falar com as amigas o que um homem não sabe ouvir. Ela não quer que o homem mude de assunto porque não o interessa. Quer que o homem entenda que nem sempre ele é seu assunto preferido. Ela quer dançar para outros homens para chamar o seu para perto. Ela quer dançar sem pensar que dança. Uma mulher quer ser restituída de seus erros, quer que acreditem nela quando mente, que duvidem dela quando fala a verdade. Uma mulher quer percorrer a saudade e não se abandonar. Uma mulher quer Deus estendido como uma praia vazia. Uma mulher quer ser perfeita dentro de suas imperfeições, detalhista em suas expedições pelas sobrancelhas. Uma mulher quer conversar para se perseguir. Quer ser olhada nos olhos, na cintura dos olhos. Quer que a janela se incline como um girassol. Quer ser a paisagem de sua cidade à noite. Quer ir vivendo o que não entende. Quer dizer o que sofre para não sofrer do mesmo jeito. Uma mulher quer descer do mundo em movimento. Ter sonhos eróticos para embaralhar as lembranças da semana anterior. Criar uma outra mulher dentro de si que a contraponha. Que seja legível como um pássaro no escuro, um rio no escuro, uma fruta na água. Uma mulher quer se sentir pressentida ao andar de costas, nunca chamada ou assobiada. Uma mulher quer descansar com afeto, sem intenções outras, ter os cabelos alisados e um colo, para perdoar o dia. Ela quer que o homem a ajude a enterrar o passado com direito a uma cruz e um nome. Que a ajude a desenterrar o futuro. Ela quer andar no mistério, mas de mãos dadas. Ela quer ser surpreendida com um beijo nos ombros, agradecer um espanto. Ela quer que a felicidade não seja permissão. Ela quer conferir se tudo vai dar certo para errar com vontade. Ela quer descobrir o que a vida quer dela nem tarde ou cedo demais. Ela quer que o homem feche as antigas relações e os frascos do banheiro. Uma mulher não quer que o homem fale por ela, como eu tentei fazer.

MINHA SANTA

Da série Minha infância não atravessa a rua sozinha




Uma mulher sempre tirava as sandálias para entrar na igreja. Chegava às 6h30 para as rezas em grupo. Molhava seu rosto na bacia de água benta, não se contentando com uma simples menção e gota na testa. Ela era jovem e com um véu negro, de roupas simples e despojadas, com um interior e segredos intactos. Nenhuma santa era tão bonita como ela. Eu deixei de olhar as estátuas para ir à igreja e detalhar seus pés. Minha mãe estranhava minha assiduidade na missa. Pensava que seria padre. Os pés dela se espalhavam com delicadeza, trigo que não perde a pose depois de colhido. Macios, amornados de córregos. Pés que não ferem o espaço, altar de unhas, como uma boca entreaberta.

SOLIDÃO ADENTRO

* Só se transborda com o mínimo.


* A loucura não liberta.


* Deus também se arrisca fora de si.

sábado, 17 de janeiro de 2004

MEU PRIMEIRO POEMA

(no convite de enterro de minha avó)



Eliza Margarida Bonatto Carpi

Estrela - 19/02/1897

Guaporé - 08/11/1979


"Agora, a Nona Eliza está com outra roupa.

Ela não chegou no céu.

Ela está no céu, sempre.

Lá, o brilho não vem das coroas.

Vem das cabeças. Tu também quando fores

terás esse brilho."

HISTÓRIAS DO TREM

* Vou indo no trem lotado, de pé. Desde que decidi ser educado, haverá uma senhora disposta a sentar. Em uma das estações, entrará alguém com mais de sessenta anos com o rosto de poltronas azuis. É certo. Levanto as sobrancelhas, faço o sinal e finjo que a paisagem corre melhor daquele jeito. Sento somente na última estação, por três fugazes minutos. Em minha frente, um jovem retira o garfo do bolso esquerdo e a faca do direito. O guardanapo está no bolso interno. Estala os ossos, coloca a térmica aos pés e abre uma farta marmita. Ao seu lado, a menina vira a cara para a janela com desgosto. Ele começa a comer um feijão ainda soltando fumaça. Como uma águia que lambe as patas em pleno vôo. Já havia visto gente devorando sanduíches e lanches no trensurb. Pela primeira vez, assistia um passageiro dando conta de um prato de três camadas geológicas. Mastigava com devoção. Respirava e ria. Talvez os dois juntos. Não conseguia desgrudar os olhos de sua bandeja. Ele poderia ter dito como censura: "o que está olhando?". Não foi o que escutei. Com um jeito sincero, perguntou se eu queria um pouco.


* Outra noite, voltando para casa, entrou no trem um senhora com uma vela acesa. Tinha a postura de aia tardia ou de primeira comunhão. A chama se agachava e subia nervosa, no vaivém irritante de chuvisco de tevê. Ela sentou reta, cuidando excessivamente com a coluna dela e do fogo. Um segurança passou pelo setor e pediu que apagasse a vela. "Não posso apagar uma promessa", replicou. "É como não pagar uma dívida". Ela falava bem, com um português de domingo. O segurança insistiu: "ninguém fuma no trem". "Eu não estou fumando, senhor. Não há nenhuma ordem que proíba carregar velas acesas aqui." Ele se calou e ficou ali, com seu colete de mangas cavadas. Não suportou a tensão da curiosidade: "Que promessa a senhora fez?". Ela não respondeu. Desceu na primeira parada e entrou em outro vagão.

ENTRELINHAS

Deu na coluna Entrelinhas, Folha de SPaulo, Ilustrada, 17/01/04:

CHUCRUTE


A prestigiada revista alemã "Lettre International" traz em seu número mais recente um poema do gaúcho Fabrício Carpinejar. "Novíssimo testamento", do livro "Biografia de uma Árvore" (2002), foi traduzido pelo veterano Curt Meyer-Clason, o mesmo que levou Guimarães Rosa ao alemão.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

NUNCA FUI FIEL À REALIDADE

NUNCA FUI FIEL À REALIDADE, A REALIDADE NUNCA FOI FIEL COMIGO

Da série Minha infância não atravessa a rua sozinha




Fabrício Carpinejar


Eu morei um terço de minha infância na caixa d' água em cima do telhado. Na 1ª série da escola, depois de chamar a professora de "tia", abria os cadernos e começava o terror: o ditado. O início de meu dia era o final do meu medo. Eu ficava como um cavalo, com a cabeça ao ar, prontificado para o disparo. De tanto olhar, conhecia minuciosamente o mapa de linhas e estrias da boca da professora. Uma boca levemente torta, de cachimbo. Ela fingia dizer pela direita e saía pela esquerda. A boca pequena e amassada, interruptor da sala, lustre, maçã da mesa, giz branco, quadro negro. Tentava anotar a primeira palavra e escorregava a segunda. Os ouvidos suavam. Eu reparava nos colegas e todos acompanhavam a marcha da boca torta, pontuais, virando a continência para a direção certa. Eu fingia acompanhar, abismado, do lado errado do pulmão, extraviado nas pausas. Errava a linha, a letra, o som. A correção acontecia uma hora depois do teste. Meu melhor desempenho no ano parava nos três acertos de dez questões. Com os resultados, os amigos comemoravam, pulavam nas cadeiras e mostravam suas estrelas às pupilas que se aproximavam, estrelas bordadas em torno do brasão das camisas e nas ombreiras dos casacos. Caminhava entre generais e jogadores de futebol. Reduzido a uma linha azul entre nove cruzes vermelhas, deitava mansamente na minha classe, aguardando o acalmar do piso. Era setembro e havia perdido o nome, chamado de 'ano perdido' na sala dos professores. Voltava para casa pelos fundos. Fazia da churrasqueira uma escada e não almoçava, escondido no vão da caixa d' água. Era minha árvore de água. Morava o meio-dia nas telhas, entre visitas de gatos e apelos dos pais e irmãos para descer. A boca torta mandou um bilhete para minha mãe comparecer com urgência na escola. Lustrando os óculos na camisa, disse: "O menino não tem conserto. Não vai se alfabetizar". Eu escutei a conversa atrás da porta. Atrás do ventre da porta. Com as raízes dos dedos no trinco. Sem abrir. Sem fechar. Sem. A mãe respondeu braba, nunca vi ela braba de esperança. Tomou para si a responsabilidade: "Deixa comigo". Firme e decidida, me puxou pela mão e me levou de volta a minha boca. Comprou uma escada e subiu comigo no telhado. A árvore de água. Nunca imaginei uma mãe no telhado. Abriu um envelope com um quebra-cabeças de separação de sílabas. Sua letra emendada parecia formigas no pão. Sua boca não era manca. Soprava uma expressão e montava a caligrafia. Descobri palavras dentro das palavras, vocábulos dentro dos vocábulos. Como filhos e fogo bifurcado. Descobri que o alfabeto não era a respiração da professora, mas existia antes dela. O alfabeto e a árvore da água. A chuva foi a folhagem daquela manhã em que passei no ditado e não comemorei. Orgulhoso, esperei o piso se acalmar. Eu já sabia o meu lugar.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2004

MÍNIMAS

* Meu pai se barbeava sem espelho. Minha mãe se penteava sem espelho. Eu sou filho da cegueira.


* O que não foi vivido totalmente volta.

CAFÉ CORTADO

Não sou nada:

sou mais o que me esqueço

do que me lembro.

TRIBUNA DO BRASIL

Deu no jornal Tribuna do Brasil, caderno saber, Brasília (DF), 11/01/04:


"Minha ambição é encontrar o que eu escondo de mim. Me denunciar sem piedade."


A fome do poeta



Foto de Rodrigo Rocha


Fabrício Carpinejar, um dos mais importantes escritores contemporâneos do país, fala sobre a antologia Caixa de Sapatos, lançada ano passado, e sobre seu novo livro, que sai em abril


Mateus Baeta


O ano de 2003 consagrou de vez o jovem poeta gaúcho Fabrício Carpinejar. Com quatro livros publicados - o primeiro, As Solas do Sol, em 1998 -, Fabrício há muito deixara de ser grande promessa para tornar-se autor premiado, inclusive internacionalmente. Mas em 2003 sua poesia alcançou respaldo de todos os lados: ele ganhou o prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, lançou uma antologia pela Companhia das Letras e imprimiu seus versos até em agendas diárias.


Aos 31 anos, Carpinejar é um dos grandes nomes da poesia brasileira contemporânea. Filho de poetas - Maria Carpi e Carlos Nejar -, o escritor, que é também jornalista, uniu os sobrenomes dos pais e passou a cantar com voz própria. Carpinejar, de fato, bem poderia ser verbo, querendo significar: render-se ao compromisso inadiável do fazer poético. Como ofício, uma aproximação da carpintaria, do carpintejar, no que ele tem de meticuloso.


A obra do autor, que recende Manoel de Barros e Jorge de Lima, é defendida por gente como João Gilberto Noll e Carlos Heitor Cony. Com profusão de metáforas e imagens, a poesia de Carpinejar é lúdica ao extremo, e a toda hora brinca com a lógica e suas convenções. Caixa de Sapatos, a antologia, é exemplo perfeito. Além de As Solas do Sol, reúne versos de Um Terno de Pássaros ao Sul (2000), Terceira Sede (2001) e Biografia de Uma Árvore(2002). Como ele conta, todos os livros giram em torno do personagem Avalor, mas abrigam uma grande multiplicidade de vozes. "Não sou unânime para te dizer sim/ Dissidências me governam", diz um dos textos.


Na entrevista abaixo, Carpinejar fala com exclusividade sobre sua obra, novos meios e sua visão da poesia. O escritor também conta como será seu novo livro, Cinco Marias, e adianta dois poemas inéditos que farão parte da obra.


Entrevista : "É preciso despertar a poesia do cotidiano".


Tribuna: Fale um pouco sobre o ano passado, sobre 2003. Foi um ano muito importante pra você, certo? Quais são as expectativas para 2004? Muda alguma coisa?


CARPINEJAR: Aumenta minha exigência, a vontade de aproveitar esse facho para mostrar que a poesia não é só uma pessoa, mas vários novos autores que estão esperando uma chance para aparecer e mostrar seu trabalho. Não quero que minha poesia sirva para a vaidade, mas para desaparecer e fazer que o texto seja cada vez mais visto. Não tenho expectativas, mas fé na literatura como insubordinação aos costumes herdados. O que eu imaginei é memória dos outros. O que eu vivi é imaginação dos leitores.


Foi lançada uma agenda com a sua poesia, com fotos turísticas e os versos espalhados pelas páginas. É preciso levar a poesia ao cotidiano?


CARPINEJAR: Sim. É preciso despertar a poesia do cotidiano. Ela já está ali, mas os escritores costumam complicá-la em livros. Borges costumava usar uma ironia: quem não consegue sentir poesia é justamente quem vai tentar ensinar poesia. Parece que queremos ler apenas para passar o tempo. Poesia é quando a gente lê para prender o tempo, feita para incomodar, acender desejos extintos, provocar os detalhes e converter a apatia anêmica da pressa em atenção amorosa com as coisas e seres.


Você concorda que a sua poesia, de metáforas escorregadias, antropomórfica, é corpo estranho entre a produção contemporânea? Como você se insere no contexto atual?


CARPINEJAR: Minhas metáforas são escorregadias? Talvez porque elas acabam trabalhando e suando perto do fogo. Minha intenção é fazer com que a poesia seja a caixa de sapatos do leitor, onde ele poderá reencontrar seu passado até descobrir que sua vida não foi em vão. Sou um porta-voz do que ainda não aconteceu. Minha maior influência é o que não li. Meu estilo foi determinado pela asma da infância. Nunca consegui fazer cartas longas, porque a tosse cortava o assunto e me proibia de levar as palavras mais adiante. Tive que ser breve, fulminante e verdadeiro. Não presto para enrolar. Eu sei enxergar a beleza, mas sou preguiçoso para explicar. Poesia é quando vamos direto ao assunto, com a mesma urgência de uma despedida.


Em Caixa de Sapatos, dá para perceber mudanças significativas nesses cinco anos passados. Como a antologia se encaixa na linha evolutiva de sua obra? E em que medida ela aponta direções?


CARPINEJAR: Pretendo apanhar a dimensão espiritual do tempo, mais do que a duração cronológica. Eu me interesso pela percepção afetiva. Faço uma narração por imagens, recolhendo diferentes pontos de vista de uma experiência. Eu me coloco ora como um pai, ora como um filho, ora como um velho, ora como uma mãe, para compor diferentes visões de uma mesma cena. Não quero ser sectário de minha voz, mas sair de minhas crenças, entender o que as outras pessoas sentiram e o que deixaram de sentir. Flagro várias salas e quartos de uma casa, como uma câmera aérea. Elaboro, portanto, uma visão prismática de mundo, uma composição romanceada. Cada livro é um capítulo desse romance em versos. Caixa de sapatos aponta para essa unidade. Meus livros estão se completando automaticamente. Cada um segue o anterior e repõe o que a obra deixou de falar. Percebes o caráter lúdico. Procuro explorar a contradição, a negação, a ironia. Às vezes falo sério porque estou rindo. Outras vezes, falo rindo o que me dói. Exponho a vida de uma maneira passional, quase selvagem. Literatura é fome, se come com as mãos, sem a formalidade dos talheres. Circulo no clima de fábula. Meu núcleo são as relações familiares. Tanto que me projeto no futuro para voltar ao passado. Todos os meus livros giram em torno do personagem Avalor, um homem que continua vivendo porque não conseguiu um lugar seguro para morrer.


Além de um site na Internet, você mantém um blog que é atualizado quase diariamente. Como é a sua relação com o meio virtual?


CARPINEJAR: O blog funciona como um vestíbulo da poesia, em que faço anotações, mínimas e tiro proveito do caráter transitório do veículo para perdurar idéias e pressentimentos. Seu funcionamento é como um jornal em que edito minha vida, especialmente a biografia que não vivi. Me invento tanto que tenho medo de perder as verdadeiras lembranças (risos) É também uma maneira de desmentir a pecha de que o blog é um diário de bobagens dos adolescentes, uma coluna social, e afirmá-lo como uma ferramenta que pode democratizar o conhecimento e divulgar escritores. A juventude tem o que dizer, deve ser ouvida, tanto que encontrou sua expressão literária na internet.


Por fim, fale de Cinco Marias, seu próximo livro. Como será? Tem previsão para ser lançado?


CARPINEJAR: Cinco Marias será lançado em abril. É a continuação de Biografia de uma árvore, agora com a família do Dr. Ossian, médico que considerou louco o personagem Avalor. Pode ser lido tanto como uma seqüência como individualmente. É meu livro feito somente com personagens femininos. As mulheres tomam a cena, mostrando que os homens ainda não chegaram nem perto de entendê-las. Eles fingem que sabem, elas fingem que concordam. É o diário de cinco vozes - a mãe e as quatro filhas. O leitor terá que descobrir pelo temperamento quem está falando. Não entrego as falas nem faço pontuação teatral. Como o jogo infantil, as pedras vão se acumulando nas mãos até que todas sejam esclarecidas em um único arremesso. É um longo poema de versos curtos. Mexe com as aparências. Parto do princípio de que se fala mais para esconder alguma coisa do que para mostrar. Um pensamento somente é escolhido para ocultar as verdadeiras intenções. Em tudo na vida, há essa cabra-cega. Minha ambição é encontrar o que eu escondo de mim. Me denunciar sem piedade.


Inéditos de Cinco Marias

Fabrício Carpinejar


A honestidade é antipática.

As pessoas que são justas,

discretas, comportadas,

netos ao colo, casos arquivados,

não rendem literatura.

A impureza emociona.


* * *


Conheci uma mulher

que sobreviveu a uma bala perdida.

Atravessei a nado seu silêncio,

as escamas de chumbo,

o orvalho negro,

o milagre esfriando.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2004

PERÍSCÓPIO

* Grande parte de minha vida me odiei. Hoje são essas épocas em que eu mais me gosto.



* Leio errado meus poemas para escrevê-los certo.


* Quando não dividimos a verdade é ela que nos divide.


* Como diz meu amigo Charles Pilger: "o tímido é o mais vaidoso, pensa que todo mundo olha para ele".

terça-feira, 13 de janeiro de 2004

ATÉ PARECE QUE SOU MUITO VELHO

* Foi-se o tempo em que os guris se masturbavam lendo O amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence. A cultura é outra no banheiro. Hoje tudo se faz com a ausência de palavras.


* Minha liberdade é ser submisso à paixão.


* Muitas vezes eu só tenho da verdade o pressentimento.


* Eu não sofro de pudor e roubo minha pobreza.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

DOUTA IGNORÂNCIA

* O que vai diferenciar um poeta não é sua leitura, mas sua ignorância. A mesma ignorância da infância que volta com a morte. Duvidar que as coisas são como explicadas. Perguntar de novo até tocar o fundo da pergunta. Errar a observação para atingir o nervo. Questionar o limite das raízes. Como diz Nerval, " a ignorância não se aprende".


* Farei poesia até que o sopro seja a minha respiração. Aliás, acredito que todo vento parte de nosso pulmão e só temos que aceitá-lo de volta.

SER LONGE

'Ser Longe', a poesia como aventura mínima

Em sua estréia poética, Fernando Moreira Salles inverte a lógica de passado, presente e futuro


FABRÍCIO CARPINEJAR

Especial para o Estado


Ser longe (Companhia das Letras, 79 págs., R$ 26) revela-se uma aventura mínima, delicada e intensa que transforma o tempo em espaço e geografia adulta. O título se articula como um epíteto de mais vida, descendendo da estrofe do livro "Lembrar é ser longe". Recordar, portanto, não é estar distante, mas incorporar a distância. A diferença entre ser e estar já caracteriza a operação musical dos poemas, feita de precisão expressiva, lances concentrados e gestos breves, à maneira do italiano Giuseppe Ungaretti. A poesia é flutuante, esférica, seca como um guache, não úmida como tinta a óleo. Extremamente dispersiva em função da noção dilacerada da transitoriedade. "Meu olhar é disperso,/ não mostra o que piso."


Ilustrada por linhas e curvas sensuais da artista Iole de Freitas, a obra refaz o percurso do homem imerso na evocação, reconhecendo a si ora como um menino, ora como avô de suas imagens. O conjunto se predispõe mais ao silêncio do que a reza. Os nomes religiosos dados aos poemas, como Oração e Confiteor, enganam à primeira vista. Declaram a dependência do alto com o raso e denotam uma falsa interlocução com Deus, que é apenas chamado para confirmar as dúvidas. A postura autoral não é sacra, mas desconfiada.


Transcrever as experiências significa rejeitá-las novamente. Uma voz só terá vez quando calada. "Não tenho outra voz/ além da que calo." A ironia surge sutil aos ouvidos treinados como no poema O Chumbo, um pequeno retrato da negação afirmativa da ditadura militar: "Bem lembro/ pediam nossos documentos/ nas ruas, aeroportos, estações/ nos revistavam,/ prendiam, interrogavam/ e às vezes/ torturavam e matavam./ Mas só/ às vezes."


O poeta mais se mostra no que esconde. Refuga o destino como bagagem, muito menos procura repassar sabedoria naquilo que está dizendo. Sua consciência extremada não permite purgatórios e revisões de sentenças, desdenhando da nostalgia e do tom melancólico. São duas realidades conversando sem apagar a distância irredutível. O que está feito fica-se. "Não temos destino/ nem queremos chegar."


Apesar da estréia em versos (há dez anos havia publicado a peça Memorando com Geraldo Mayrink), não se verifica um escritor afirmando sua individualidade e balbuciando confissões de seu duelo com a página em branco, características de grande parte dos iniciantes. Percebe-se, de saída, um escritor maduro, com um filtro existencial que tudo pesa antes de soltar em significação. Como diz Antonio Candido, abre um "universo cheio de flutuações de sentido, que vão pouco a pouco impregnando a sensibilidade e criando o desejo de releitura". Tal como pássaro que cisca os próprios vôos, o autor habita a passagem e não guarda nada além das asas e do vento. Seu olhar é mental, de quem sobrevoa, porém não interfere. Passa e aceita. Revê e não salda as contas. Um morto na janela.


Santo Agostinho entabulava a linha temporal em três virtudes. O passado equivaleria à memória; o presente, à experiência; e o futuro, à expectativa. Moreira Salles inverte essa lógica. O passado torna-se expectativa e o futuro vira memória. "Mais medo, aquele/ de ainda lembrar." Dessa forma, avança retornando. Olha o que aconteceu com a mesma palpitação e respiração ofegante de sua infância, em assombro que não é covardia. Ao dizer uma palavra pode apagar a lembrança. Arrisca. Faz da poesia um esquecimento alegre.


* Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de "Caixa de sapatos", "Biografia de uma árvore", entre outros.


(Jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, pg. D-5, 12/01/04)

sábado, 10 de janeiro de 2004

LUIS CARLOS, MEU PAI

Fabrício Carpinejar


Meu pai faz 65 anos neste domingo. Meu pai não é o Carlos Nejar que vocês conhecem. É outro nele. Meu pai é um homem e seus longos silêncios. Um homem que entrou no livro e cava para sair dele. Um homem que acredito, em alguma porção de seu dia, tenta não ser Carlos Nejar. Não aceita o que dizem dele ou o que diz de si. Em algum momento de seu dia, é ele e Deus se olhando como plumas e espuma, como lume e azeite, como quem toca um vento em pêlo, sem rédeas. É ele e seu passado aberto. Esse pai que luta contra si mesmo é o meu pai. Meu pai não é a literatura. Meu pai é sair da literatura. Quando pequeno, ele me convidava para ficar na varanda. Pegava seu livro de anotações e escrevia como um cego olhando para cima. Não falava nada. O sibilar das altas árvores e a criança com olhos de figo tentando decifrá-lo. Devo ter tido três vidas até agora. Uma, ao menos, empenhei para compreendê-lo. Não desisto de procurá-lo mesmo tendo o encontrado. Apresento o nariz dele, o jeito de pontuar perante a comida, o riso cortando as vogais da voz. Tenho do meu pai também o que não tenho dele. Eu achava sua letra bonita, escamosa, azul. Sempre procurei usar o mesmo tipo de caneta. Ando com duas no bolso diariamente. Minha mulher acha graça - eu dificilmente as uso. É como um relógio de bolso que se emprega como espelho. Ele experimentou cabelo comprido e barba. Morou em Portugal, na Alemanha, em hotel em Porto Alegre. Morou fora e dentro de si. Agora está com um rosto de criança, esverdeado. Suas mãos oferecem marcas de passaporte e outros carimbos e caligrafia. Meu pai nunca guardou pente nos bolsos da calça. Acho que nunca fez pipa, nunca tocou violão, nunca jogou bolita. Sei pouco de sua infância. Tão pouco que o que sei devo ter sonhado. Eu já vi ele se barbear e se cortar com o retorno das mãos. O homem que se corta é meu pai. O homem que sangra tem que ter dor para cicatrizar. Ele cicatriza. Meu pai não sabe conversar longe. Ele te puxa para perto do rosto. Ele conversa com as mãos em meus ombros.Meu pai tem 1,80 m e coloca boinas como uma forma acolchoada de pássaro. Se alguém me conta casos dele, eu escuto com extremada atenção para me encontrar. Eu sou meu pai em outra língua. Meu pai gosta de suspensórios, de pastel, de mastigar lentamente as palavras. Não chorei na frente dele em nenhum momento, mas beijei suas pupilas quando chorava. Minha boca já foi sua pálpebra. Meu pai não sai nos jornais, não é conhecido. Não precisa confirmar a fama ao nome. Não é imortal e tem medo da morte. Meu pai é Luiz Carlos Verzoni Nejar, quatro quarteirões de nome, dois deles desocupados, onde me sento para ouvir o chão e tirar os ciscos do olho do fogo. Meu pai é quando Nejar dorme. Meu pai dorme de óculos. Eu aproximo saudades. Saudade é cheirar a cabeça do filho, o cheiro de cria. Meu pai foi gordo, magro, mais ou menos. Nunca o vi jogar futebol, mas me levou uma tarde para o estádio na torcida errada. Ele colocou seu corpo em volta do meu. Não assisti o jogo, e sim seus braços para me proteger. Meu pai não me levava para a escola. Eu copiei sua fé. Meu pai ri alto. Não sabe contar piada, sabe contar estórias. Controlo o salto de sua respiração para saber se está bem. Não bebe vinho e álcool. Lê com voracidade, com os livros espalhados na cama. Perde as coisas com facilidade. Encontra as coisas quando não mais precisa delas. É passional na amizade. Acredita que o mundo está com ele ou contra ele. Não há meio-termo. Um amigo pode virar inimigo em um minuto. Um inimigo pode virar amigo no próximo minuto. Não se muda temperamento. Tem mania por cartas. Um dia sem carteiro é um dia que ainda não aconteceu. Meu pai folheia jornal e revista sublinhando. Tomávamos suco e comíamos pastel em lancheria na rua Riachuelo. Era antes do almoço, no intervalo do serviço. Minha mãe Mariazinha ralhava porque eu não comia nada depois. Era segredo. Fingia falta de fome, o orgulho de ter segredos. Quem não guarda segredos está muito exposto. Eu guardo segredos para me inventar diante do mar. O pai mora diante do mar. Ele escuta música clássica. Música que não tenha letra. Ele é a letra. Meu pai fala do pampa como de um avô. Quando pisa em Porto Alegre é diferente, inseguro, pensa que as pessoas não vão amá-lo. Meu pai é seguro com a Elza ao lado. Elza é sua mansidão, sua calma e copo d'água. Ave que não se assusta com a proximidade. Meu pai tem quatro netos, dois filhos meus e dois da Carla. Os netos podem saber mais do que eu, podem imaginar mais. Meu pai faliu na juventude com seu pai. Sobreviveu à falência e ao contágio social. Perderam os terrenos, as posses, o futuro. Ele se agarrou à palavra. Não soltou o tronco de sua queda. Meu pai transformou seu porão em água-furtada. Corre com ânsia para me dizer delicadezas. Meu pai quer coerência, unidade. Ainda não entende que viver é desorganizado. Meu pai faz 65 anos. Esse que eu descrevo ainda não é meu pai. Mas é um caminho até ele. O único caminho que conheço.

CRÍTICA

Um memoralista do assobio


Alberto da Costa e Silva, um dos grandes autores da língua portuguesa, ainda desconhecido da maioria dos leitores, completa cinqüenta anos de poesia.


Fabrício Carpinejar*


A contar sua estréia com O Parque e outros poemas, a poesia de Alberto da Costa e Silva completou cinqüenta anos em 2003 sem muito alarde, buzinas e passagem de meteoros. Não foram as cinco décadas que qualificaram seu estilo. Antes da comemoração, ele já era indiscutivelmente um dos grandes poetas brasileiros.


Sua figura discreta e serena sempre favoreceu o volume do silêncio, nome restrito a um grupo de amigos e conhecidos que acompanharam muito de suas obras em tiragens limitadas e fora do comércio. Diplomata, exerceu a presidência da Academia Brasileira de Letras no ano passado. É mais valorizado como africanista, autor de clássicos das origens da escravidão como "A Enxada e a Lança" (1996) e a continuação "A Manilha e o Libambo"(2001). Nunca chamou atenção para si, como quem traz os segredos dobrados em cartas e não os exibe como vaidade. Ele conjuga a primeira pessoa na terceira, biografia feita para a leitura dos outros que o habitam. "Falo de mim porque bem sei que a vida/ lava o meu rosto com o suor dos outros." Seus livros exalam o poder visual e imaginativo da memória se transformando em imaginação. A sutil transição poemática, o pedágio de converter - depois das uvas em vinho - o vinho em mãos. Em o "Espelho do Príncipe", ele assinala: "O tempo era curto para o sonho das mãos". As mãos estão presentes em suas principais peças como uma metáfora predileta de aceno ou de um sinal de imponderável afeto.


A poesia de Alberto da Costa e Silva é evocativa, prismática, alucinada como um sonho, mas regrada como um terço, seja em sonetos ou verso livre. Uma espiral curativa que não termina de começar. O movimento se assemelha a uma descida de escada. Um retorno ao mesmo caminho que se andou. As imagens vão se abrindo individualmente nas pedras verbais em direção ao final que resume e assoma os passos. Versos com densidade metafísica e textura minimalista.


"só tive Deus em mim alguns momentos

que o tempo não corrói, nem o sol cobre."


É um memorialista que se dilata ao ouvido. Um memorialista do assobio. "Quando fui assobio para não ser palavra." Sua condição é de um ouvinte privilegiado, que rumina as palavras e as descasca pela melodia. Recolhe o rumor do gesto. A voz tem forma e fábula. Identifica o timbre pela sinuosidade. "Ouço a tua voz de avena clara e pão."


Alberto da Costa e Silva tem uma obsessão, a de perdurar o que não conseguiu enxergar enquanto estava presente. Fixa-se naquilo que escapa. Todo poema é reconciliação, retorno, ajuste de dados. Sabe que o tempo perdido é também tempo capturado. Sua linha rítmica guarda a impaciência da terra, a genealogia do sobrado, onde o café torrado faz par com açúcar mascavo, as pandorgas com os brinquedos da feira, as aves com as crinas dos cavalos, o varal e os canaviais brancos, o velo dos carneiros com a letra do pai poeta Da Costa e Silva (1885-1950). Emana uma intempestiva entrega. O sol envelhece mais rápido seus familiares e ele tece o testamento da residência, levantando o poço do centro de seu quarto. Tanto que um dos grandes poemas sobre a infância na literatura brasileira, ao lado de Paulo Mendes Campos ("Infância"), é "Menino a cavalo". Simplicidade e singeleza. Frescor de claridade depois da chuva. Nele, a sala é alinhada como "um estômago", "centro de um abacate sem semente". A partida de pai e filho no lombo do animal arrebata pouco a pouco, em um crescendo, do campo para a página, das rédeas para a mão, do silêncio dos joelhos às palavras que podem doer e desmoronar a esperança. Perdura a necessidade filial de ser visto, de ser fixado pela paternidade, de insistir em permanecer, mesmo depois do adeus. Trata-se de um relato ao pai enfermo. O adulto revê a si mesmo quando pequeno com uma compreensão (ou seria compaixão?) que não formulava na época.


"A mão de meu pai sobre o papel desenha,

quase num só traço, o menino a cavalo.


Sai de sua mão a mão com que lhe aceno,

e vai sobre o papel o menino a cavalo."




O seu mais recente livro, "Poesia Reunida" (Nova Fronteira, 2000), prêmio Jabuti, está estruturado justamente em faixas etárias: poemas dos vinte, dos trinta, dos quarenta, dos cinqüenta e sessenta anos. A espacialização da antologia demonstra a circularidade do tempo, a linha de convivência simultânea e harmoniosa (ainda que difícil e dolorida) do menino-pai-avô. Eles conversam ao mesmo tempo em todos os quadrantes, em diferentes perspectivas. "Haver sido um sonho e alguns versos." O tempo pára a se recapitular. O metabolismo entre os três se firma em um mundo simbólico, ancestral, tomado de associações familiares e íntimas. Os dias são antigamente novos. O autor não diz o que pensa, mas o que escuta. Sua linhagem é de histórias herdadas e comprovadas com a chegada dos anos. O pessimismo aguça o pensamento, ao invés de afundar. "Esse risco no escuro, incompreensível e inútil, como levar um boi para pastar na praia." Os cortes abruptos de humor e verdade condicionam um estado extremado de emoção. Os epigramas pisam (novamente a escada) como um choque elétrico no coração. Pouco se encontra a impostura de convencer alguém. O narrador experimenta a espontaneidade do escasso, o detalhe natural. É capaz de definir, por exemplo, o jeito de um homem pelo passar os dedos nas sobrancelhas. Em contidas pinceladas, sintetiza o tremor de histórias, como a do amor dos avós: "e tudo o que canta nesta forma de abraço que é um roçar de dedos". Quem revelaria melhor a ternura da velhice?


A verdade apenas se manifesta, longe de ser construída. O contexto descreve o poeta (não o contrário), o impele a participar da criação. Assim como Proust, o recurso é interlocutório, solipsista, de quem fala dos vizinhos para si. "O feio é o belo", avisa, acentuando o caráter fiel e puro de sua absorção.


Alberto é um músico da luz, como definia Jean Renoir sobre o cinema, ligado à Renascença Italiana por Boticceli e à pintura holandesa de do século XVII de Vermeer. Justamente os dois pintores com o maior talento em captar o espírito pensativo da mulher, as sutilezas e meandros do mistério feminino. Neste sentido, o retrato da avó é perfeito, à semelhança de um quadro.


"De luto, a minha avó costura à máquina,

e gira um catavento em plena sala.

Vejo seu rosto, sombra que a janela

corrompe contra um pátio amarelado


de sol e de mosaicos. Sobre a mesa,

a tesoura, um esquadro, alguns retalhos

e a imóvel solidão. A minha avó,

com seus olhos azuis, o tempo acalma.


A minha avó é jovem, mansa e apenas

a limpidez de tudo. Sonho vê-la

no seu vestido negro, a gola branca,

contra o corpo de cão, negro, da máquina:


a roda, de perfil, parece imóvel

e a vida não se exila na beleza."

(Soneto a Vermeer)


O escritor demonstra sua aptidão contemplativa. Observa passivo. Como uma criança na surdina, atrás da porta. Um espectador de sua própria vida. Igual fulgor pictórico pode ser encontrado em "Imitação de Boticceli", em que a umidade da manhã se concentra nas frutas espalhadas. A atmosfera específica é preservada com o envolvimento de pormenores e de uma mobilidade cromática.


"Como a luz numa caixa de laranjas

ou a chuva sobre a mesa de verduras no

mercado,

desce a manhã neste jardim, descalça.


e as flores que traz, na involuntária beleza,

aparecem, contra seu corpo de verão

enfunado,

musgo, limo, ferrugem, as feridas que os

pássaros



abrem na casca lisa e perfeita de um fruto"


Entre o poema dedicado à avó e esse, há uma afinidade eletiva de termos. No primeiro, o corpo do cão da máquina e uma beleza incompleta. No segundo, o corpo de verão e a beleza involuntária. Parecem dípticos, poemas gêmeos. Um é protagonizado pela sombra, o seguinte é personificado pela luz.


A experiência e a articulação emocional das cenas orientam a recordação. Ele vê o que sente. Guarda o que esqueceu intensamente. Elimina qualquer artificio retórico e nódoas de sentimentalismo. Não há piedade quando se ressuscita. Só o que perece é eterno. "Contra os deuses, há o eterno". A bipolaridade divino-transitório reforça a inquietação de sua escrita. A corrosão faz a permanência. Ser corroído pelos objetos significa habitá-los. Somente o que passou é posse.


* Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de "Caixa de sapatos" (Companhia das Letras, 2003), entre outros.

(Jornal Rascunho, edição de janeiro de 2004)

ENTREVISTA

Poemas datilografados com suor e espuma

FABRÍCIO CARPINEJAR/ Jornalista e poeta, autor de Caixa de Sapatos (Companhia das Letras, 2003)




Armando Freitas Filho: sua poesia tem a estranha paz de estar em guerra

Foto(s): Paulo Jabour, divulgação/ZH




Leitor inveterado de dicionários, hábito herdado do pai, Armando Freitas Filho, 63 anos, é inquieto, procurando incansavelmente um novo jeito de contestar os hábitos. Não transforma o poema em confessionário pessoal, exorciza o texto, no meio de um fogo cruzado entre uma linhagem mais clássica e outra coloquial e lúdica. Premiado com o Jabuti/1986 e Alphonsus de Guimaraens/2000, da Biblioteca Nacional, Freitas Filho completa quatro décadas de poesia em grande estilo. A Nova Fronteira lança Máquina de Escrever, obra reunida e revista, com 12 livros publicados e o inédito Numeral, Nominal. "Sou o autor mais antigo da Nova Fronteira, não o mais velho", brinca.


Morando no recolhimento carioca da Urca, Freitas Filho é um escritor de ouvido. Contrastando com a poética plástica de Ferreira Gullar, fecha os olhos e recorre à cegueira sonora. Um rapper na poesia brasileira, passando por cima da marcação cronológica e da disposição tradicional. posturas e provocações. Escreve apesar da literatura, desenvolvendo a quebra sintática e rítmica. Voz com fôlego de rádio, "ligada na freqüência do mar", arfa pela vida sem pontuação. Desde 1963, sua poesia é sinônimo de permanente crise, atravessando o sinal vermelho. Não se ajeita a nenhum lado da linguagem. Seus livros emancipam detalhes banais em princípios estéticos. Retira inspiração de uma missa fúnebre para nomear o volume De Corpo Presente. Como Godard, o segundo plano é o mais relevante. Adere ao caos, descrevendo a turbulência dos encontros e traduzindo o idioma entre os corpos. Não elabora uma lírica contemplativa, parada, porém imbuída de um movimento orgânico. Algo como um exaustor, que puxa as vivências com voracidade, renovando o ar viciado. Não parte, nem chega a algum lugar, alegra-se em seguir em trânsito. Tem a estranha paz de estar em guerra. Os livros começam acelerados para desacelerar ao final.


Em entrevista ao Cultura, o poeta saca versos para assustar o destino.


Cultura - Você completa quatro dé cadas de poesia. Está lançando agora a antologia Máquina de Escrever, composta de 12 livros editados e um inédito. Levando em conta Fio Terra (2000), você valoriza o registro, a rasura, a rapidez do diário, o fluxo instável do cotidiano. Você pretende cada vez mais retirar os intermediários do poema, você que ficar cara a cara com o leitor?


Armando Freitas Filho- Ficar cara a cara com o leitor é ficar cara a cara com ninguém. É assim que deve ser. Pelo menos é assim que entendo. Mas este ninguém acaba sendo alguém, que me lerá com os olhos de ninguém. Maria Betânia Amoroso disse que escrevo na linha da arrebentação. Gostaria de acreditar nisso, até porque é belo, como imagem. Mas, sinceramente, não me vejo com essa coragem, até porque não sei nadar. Portanto, estou aquém da arrebentação, sem competência para enfrentar o mar alto e aberto. A poesia, como eu a pratico, é um lugar, em princípio, não marginado. Diria até que é o lugar do mar alto e aberto, supracitado. Mas se eu não o alcanço, sempre posso pescar algo, algas que sejam, mas que me trazem a informação, alguma coisa da constituição desse ambiente em abismo, grandioso, e que eu, então, minimamente, traduzo ou tento.


Cultura - Poderia se dizer que sua escrita sem ponto final, espécie de voz corrida de rádio, procura ser fiel à vida ao trair a própria literatura ("o sujo das unhas têm um toque de arte-final"), no sentido de não se subjugar à escrita canônica?


Freitas Filho- Não tenho a sensação de trair a literatura para ser fiel à vida, já que sempre as vi entrelaçadas. Meu impulso ao escrever não é o de não me subjugar ao cânone e sim de buscar, nesse cânone, um lugar possível para minha voz, por mais exíguo que seja, e, finalmente em vista de tudo isso, não me vejo escrevendo contra a literatura, mas apesar dela, da literatura boa que existe, e que, por isso, dá vontade de desistir. A sensação é de trabalho pesado, como dizia Clarice Lispector: "Escrever é duro como quebrar rochas".


Cultura - Você menciona esse ímpeto de desistir. Já passou por fases de renúncia e de entressafra, em que pensava que a obra estava concluída?


Freitas Filho- O ímpeto de desistir se confunde um pouco com o ímpeto (creio eu), de se matar, que é comum à condição humana. Até agora nunca passei por fases de renúncia ou entressafra, o que deve ser terrível. Valéry, por exemplo, se não me engano, ficou 10 anos sem escrever poesia, inteiramente bloqueado. Deve ser trágico. Mas quem sabe, para certos temperamentos, essa experiência não seja necessária?


Cultura - O inédito Numeral, Nominal parece um desdobramento de Números Anônimos (1994). A ligação é consciente?


Freitas Filho- Parece, mas não é. Este título Números Anônimos foi inspirado no opúsculo de Cláudio Manuel da Costa, Números harmônicos - Temperado em Heróica e Lírica Consonância, poema escrito quando o poeta estava em Lisboa e que não consta, junto com outras peças da mesma época, das suas Obras. Segundo os estudiosos de Cláudio Manuel, ele mesmo na hora da edição de sua poesia os teria rejeitado. Esses textos são dados como perdidos. Já Numeral, Nominal é a divisão do meu livro inédito em duas partes. Na primeira, vem, de enfiada, os poemas apenas numerados. Essa série continuará nos próximos livros que me for dado fazer: ela acaba quando eu acabar, pelo menos é o que eu penso hoje. Os poemas vão até o número 31, nesta coletânea, e têm um caráter investigativo, problemático, digamos assim. Já a outra, Nominal, é francamente temática: os títulos "fecham" mais o escopo da composição. Não obstante esta distinção, às vezes, há uma "contaminação" dos campos, isto é: eles se "visitam".


Cultura - Com a poesia reunida, você voltou os olhos ao passado. Qual a sensação de revisitar o percurso (teve espanto ou comoção ou desconfiança?), o que evidenciaria no auto-retrato?


Freitas Filho- Não tive espanto ou desconfiança. Comoção seria uma palavra forte demais. Posso dizer que tive saudade de mim ao rever meu primeiro livro, Palavra, escrito entre os 20 e os 22 anos, e publicado aos 23. A sensação, portanto, nada teve de literária, foi mais de cunho existencial, psicológico. Quanto ao auto-retrato, ao rever todos os meus livros para a edição de Máquina de Escrever, não me senti nenhum Dorian Gray, o que já é um ganho. Em outras palavras: foi como enfileirar vários retratos 3x4 que você vai tirando ao longo da vida e constatar o óbvio: que o tempo passa. E outra coisa menos óbvia: que nem sempre é para pior.


Cultura - Já em sua estréia Palavra (1963), você antecipava que "o espaço devora o movimento". Alheia aos cartões-postais, sua poética canta com ardor o Rio de Janeiro, vivendo todas as contradições e rumores da cidade?


Freitas Filho- De fato, o Rio de Janeiro permeia o que eu escrevo. Sou um ser litorâneo, que sempre viveu perto do mar, com o horizonte à vista. A cidade aparece, eu diria, por entre frestas, com sua beleza terrível, tantas vezes acossada pelo horror. Nem ela nem nós, afinal de contas, somos à prova de bala.



(Jornal Zero Hora, caderno Cultura, Porto Alegre (RS),10/01/2004, Edição nº 14019)

REVISTA APLAUSO

Deu na Revista Aplauso, O melhor de 2003, Ano 6, Nº. 52, dezembro de 2003:


Carpinejar ganha o Brasil

A antologia Caixa de sapatos (Cia. das Letras), do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar, foi saudada como um dos melhores lançamentos do gênero no ano. Reunião (ou recriação) de poemas de seus quatro livros, o lançamento marcou a estréia do autor em uma grande editora e a coroação de seu trabalho nos outros estados brasileiros.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2004

ESSE VERÃO

O poeta espanhol Góngora escreveu seus sonetos e fábulas sob o inferno implacável de 40º. Sua poesia pode ser comparada à insolação. Profusão de imagens e febre alta da linguagem. "Compassiva erva, encomendada:/ sorva, enrugada se do feno em meio;/ a pera, de que foi cuna dourada/ a ruiva palha e - pálida tutora -/ a nega avara e, larga, de ouro a cora." Entendeste? É muita volta na quadra. Parece que o autor suspende a conclusão de um verso e somente o retoma três anos depois. O calor colabora para o delírio. Difícil se expressar na asfixia, com o pescoço prensado pela luz. Perde-se a vontade de falar. Fica-se inanimado, uma pedra carregando pedras. O vento que passa não alivia o impacto da claridade. Sádico, surge para ofender com seu bafo de bêbado. O suor assume a incidência de álcool. Deixa-se o banho e já estamos prontos para um outro. Sem praia, a estação é um beco sem saída. O tempo custa a passar. A noite queima as pilhas das estrelas. Tudo é esperança de chuva. Minha mãe me telefona todo dia para dizer que a chuva não veio. O calor transforma os sábios em loucos, os equilibrados em histéricos, a fé em resignação. A ardência dos olhos faz a gente andar de boca aberta. Caminha-se numa esteira de idéias fixas. A barba e os pêlos crescem rápido. A pele retorna à adolescência, com brotoejas, manchas e espinhas. As lâmpadas queimam em sincronia. Descobre-se que o ar-condicionado precisa de limpeza. As crianças emagrecem o rosto. Os sons sobem de altura. É a estação em que se define verdadeiramente quantos cães existem no bairro. Conta-se os cachorros para não dormir. O barulho da piscina está no vizinho. Ninguém consegue terminar uma conversa. A respiração se enfraquece em suspiro. Bocejar é uma prática extenuante para se alcançar nesta época. O carro é uma sauna mista. Não adianta fechar a janela. De carona, leva-se a fumaça irritante do sol. Os casais cansam de brigar. A briga fica reservada para as moscas na cozinha e os mosquitos no quarto.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

HORÓSCOPO

Tenho uma lealdade estranha aos eletrodomésticos e aparelhos de casa. Não consigo me livrar das velharias. Penso em trocar e logo mudo de opinião. Minha cafeteira faz oito anos. Dependendo do jeito que ela é colocada, vaza embaixo, deixando apenas uma borra do que seria o café. Toda manhã é um mistério se ela vai inundar a pia ou não. Tornou-se meu horóscopo. A cafeteira decide se terei sorte, juízo ou amor. Consulto o humor do escapamento como quem recorre a uma astróloga. Com oito anos, o liquidificador perdeu a tampa e permanece funcionando com um pedaço de brinquedo do Vicente. É uma escultura infantil. O CD tem doze anos, veio com a Ana e seu visor queimou. Colocamos literalmente a música no escuro. Os objetos em casa se empenham para o pior. Quebram pela metade - me deixando indeciso com o destino. Nunca a destruição é completa para repor sem culpa. O vídeo contabiliza dez anos. Não sei como ele não ronca depois dos meus pequenos o confundirem com lata reciclável de lixo. Um dia encontrei rebobinando os óculos sumidos da mãe. Aliás, a mãe é imbatível em fidelidade. Ainda usa uma máquina de lavar adquirida em meu nascimento. Trinta e um anos. O meu computador já fechou os sete aniversários de azar. A marca é impossível de se definir, formada de partes herdadas de cada espelunca eletrônica que foi estragando. Minha persistência pode ser preguiça ou, algo mais grave, meu medo de ser também substituído.

DIÁLOGO

Diálogo atroz no início de 2004 em alguma repartição de algum emprego de muitos anos em algum ponto remoto de minhas palavras:


- Sabe, aqui dentro a sensação é que não se tem futuro.


- Não, o pior: aqui dentro a sensação é que a gente não tem passado.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2004

BREVE QUARTO

A partir de uma aquarela de Elizabeth Bishop


Fabrício Carpinejar


Um quarto vesgo,

flutuante, vago.

Porão de lembranças

mais vistas quando guardadas.

Vagas demoradas na escotilha,

rápidas em sua lentidão de mover a superfície.


Arrumo meu abandono

ao próximo hóspede.


Não moro em nenhum lugar

que não seja o susto

de perder uma relíquia, um amor, o desastre.


Há coisas que não aprendem a ficar

mesmo com a insistência das cinzas.

As malas ao lado da cama

sempre derradeiras

em selecionar o que basta na pele.

As roupas imprecisas ao tato,

escassas no excesso.

O ventilador, as cortinas pretas, as flores brancas,

tudo é orvalho silente, brevidade ardente,

escândalo do silêncio.


O navio está incendiando

e ninguém me avisa,

muito menos

o meu corpo.

terça-feira, 6 de janeiro de 2004

MEUS PÉS

Nunca aprendi a assobiar ou fazer bola com chiclete. Comecei a me enganar na infância para enganar depois os outros adultos que seria. Tive que fazer chuva com um punhado de brisa. A frase justa também me parece apertada. Meus pés chatos são de borracha. Eles se moldam ao chão como ovo em frigideira. Não têm curvas. Os dedos se assemelham às cabeças de alfinete. Eu posso usar tênis 37 até sapato 42. Uma chave que entra em qualquer calçado. Sou um chaveiro de pés. Não fico esmagado no mínimo, muito menos folgado no máximo. Amarro os cadarços e a pele incha, massa ao fogo, ou esvazia, bóia de piscina. Meus pés atuam como mímicos. Se passa um cachorro, tomam a forma de patas. Se passa uma criança, brincam de sanfona. Há tamanhos e modelos de sobra no estoque do osso.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2004

EU SÓ VIVO O QUE NÃO CONSEGUI IMAGINAR

* Eu só vivo o que não consegui imaginar.


* No trem, a menina dizia para o namorado: "minha solidão é grande demais para que possas entrar nela".



* Poesia não é bula de remédio. As virtudes da poesia são exatamente as contra-indicações.


* Transformo minha memória na memória dos outros.

domingo, 4 de janeiro de 2004

COM CÓPIA EM PAPEL CARBONO

Fabrício Carpinejar

Identificaram os seguintes itens na memória de um homem de idade indefinida, morador solitário da Rua do Arvoredo, em letra datilografada numa Olivetti verde, com fita vermelha e preta. Uma por uma das peças e pequenos fósseis foram retirados de suas lembranças. Havia mais de cem pedras obstruindo a vesícula da memória.


Kichute. Vinil. Creolina. Mimeógrafo. Placar. Corcel II. Carpim. Eslaque. Laquê. Bilboquê. Bambolê. Marcha no guidão. Groselha. Ki-suco. Vendedor de Mirador. Perdidos no espaço. Jeannie é um gênio. Elo Perdido. Terra de Gigantes. Daniel Boom. Figueroa. Túnel do Tempo. Fitipaldi. Pampa Safari. Escaler. 14 Bis. Secos e Molhados. Revista Manchete. Futebol cards. Bolita. Pegador de armazém. Balança de pinos. Sete belos. Funda. Sapato de bico. Boca de sino. Chacrina. Gretchen. Bolinha. Saramandaia. Irmãos Coragem. Bigode. Paulo César Pereio. Mad. Maricas. Dona Flor e seus dois maridos. Pink Floyd. Corneta do Rintintin. Lassie. Bolachas Maria. Guimba. Fralda de pano. Auxílio à lista. Dancin'Days. Discoteca. Meretriz. Sofá-cama. Beliche. Loção pós-barba. Ceasa. Herbie. Fusca. Opala. Ilha do paraíso. Love story. Nescau. Regina Duarte. Cruzeiro. Fiado. Lampião. Minancora. Babados. Mequetrefes. Grega. Abrigo Adidas. Balela. Disco. Caldo de cana. Mandiopã. Coelho Ricochete. Reunião dançante. Hanna & Barbera. Cueca virada. Bolinho de chuva. Pipoca com mel. Cuba libre. Cartilha. Caderno de caligrafia. Globo de espelhos. Supercine. Papel de parede. O céu é o limite. Jota Silvestre. Flavio Cavalcante. Escrava Isaura. Sobrancelhas raspadas. Peruca. Playmobil. Meias de lurex. Cuecão. Drive in. Polaroid. Santinhos. Corner. Pelota. Tiro de canto. Cinto para emagrecer. Pulseiras magnéticas. Magnésio. Cestas de natal. Caloi. Estação férrea. Prostíbulo. Curetagem. Sacristão. Coroinha. Felação. Arena. Venezianas. Vidro fumê. Óculos Ray Ban. Estilingue. Abluções. Chaco. Mercúrio Cromo. Panacéia. Casquinha. Amolador. Sal de frutas. Bolo inglês. Morfina.


Mesmo lavrado em cartório, o homem precisou de um tradutor para dar sentido ao que recordava. Usava suspensório. Guardava a dentadura de alguém no copo de requeijão. O relógio da parede da cozinha não acompanhava o horário de verão, dando sinais de subversão. Uma cobiçada reprodução da Última Ceia estava fixada com durex no corredor azul. Muitos vocábulos saltavam sublinhados. Ele era um dicionário aleatório. Verbete sem sinônimo e esposa. Reduzido pela rua, se considerava perseguido pela língua, minoria nas palavras cruzadas. Suas fotos não tinham rascunhos. Não deixou herdeiros. As datas apareciam borradas. Costumes foram umedecendo no papel de presente dos cadernos e do fundo das gavetas. Era o que não voltou. Tudo o que escrevia fazia em papel carbono. Ele se dizia consumido.