sábado, 24 de janeiro de 2004

EU NÃO VI



Gravura de Cy Twombly


Fabrício Carpinejar


Eu não queria ir, me acordaram cedo. O frio da campanha pesava mais do que o poncho. As pernas não achavam o ritmo, enxadas ainda novas. Os pés pesados, chumbosos, estranhos. Como galos rubros martelando a geada, procurando desesperadamente a terra. Eu não queria ir, mas o estábulo estava escuro, um escuro doméstico, atravessado de sons e sinos, feno e sacas. Precisava provar que era homem. Menino ainda pensando que era cedo para saltar de si e dos lençóis roucos. Eu queria dar nome ao boi. O peão me disse que nome demora a vida. Eu não queria ver. Eu vi arrancarem os olhos do boi. Não queria ver. Vi onde parte o jorro dos olhos do boi. O que tinha o boi de paisagem pastada. O capim alto das veias. O capim enegrecendo as veias. O capim emagrecendo as veias. O capim queimado da passagem dos olhos do que foi o boi. A ardência de dentro para fora, o berro de fora para dentro. O capim e o pescoço. O capim faminto. Não queria ver. Vi o que não queria ver. O boi e os galos rubros martelando a geada, procurando desesperadamente a terra. Os olhos da terra.

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