sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

NUNCA FUI FIEL À REALIDADE

NUNCA FUI FIEL À REALIDADE, A REALIDADE NUNCA FOI FIEL COMIGO

Da série Minha infância não atravessa a rua sozinha




Fabrício Carpinejar


Eu morei um terço de minha infância na caixa d' água em cima do telhado. Na 1ª série da escola, depois de chamar a professora de "tia", abria os cadernos e começava o terror: o ditado. O início de meu dia era o final do meu medo. Eu ficava como um cavalo, com a cabeça ao ar, prontificado para o disparo. De tanto olhar, conhecia minuciosamente o mapa de linhas e estrias da boca da professora. Uma boca levemente torta, de cachimbo. Ela fingia dizer pela direita e saía pela esquerda. A boca pequena e amassada, interruptor da sala, lustre, maçã da mesa, giz branco, quadro negro. Tentava anotar a primeira palavra e escorregava a segunda. Os ouvidos suavam. Eu reparava nos colegas e todos acompanhavam a marcha da boca torta, pontuais, virando a continência para a direção certa. Eu fingia acompanhar, abismado, do lado errado do pulmão, extraviado nas pausas. Errava a linha, a letra, o som. A correção acontecia uma hora depois do teste. Meu melhor desempenho no ano parava nos três acertos de dez questões. Com os resultados, os amigos comemoravam, pulavam nas cadeiras e mostravam suas estrelas às pupilas que se aproximavam, estrelas bordadas em torno do brasão das camisas e nas ombreiras dos casacos. Caminhava entre generais e jogadores de futebol. Reduzido a uma linha azul entre nove cruzes vermelhas, deitava mansamente na minha classe, aguardando o acalmar do piso. Era setembro e havia perdido o nome, chamado de 'ano perdido' na sala dos professores. Voltava para casa pelos fundos. Fazia da churrasqueira uma escada e não almoçava, escondido no vão da caixa d' água. Era minha árvore de água. Morava o meio-dia nas telhas, entre visitas de gatos e apelos dos pais e irmãos para descer. A boca torta mandou um bilhete para minha mãe comparecer com urgência na escola. Lustrando os óculos na camisa, disse: "O menino não tem conserto. Não vai se alfabetizar". Eu escutei a conversa atrás da porta. Atrás do ventre da porta. Com as raízes dos dedos no trinco. Sem abrir. Sem fechar. Sem. A mãe respondeu braba, nunca vi ela braba de esperança. Tomou para si a responsabilidade: "Deixa comigo". Firme e decidida, me puxou pela mão e me levou de volta a minha boca. Comprou uma escada e subiu comigo no telhado. A árvore de água. Nunca imaginei uma mãe no telhado. Abriu um envelope com um quebra-cabeças de separação de sílabas. Sua letra emendada parecia formigas no pão. Sua boca não era manca. Soprava uma expressão e montava a caligrafia. Descobri palavras dentro das palavras, vocábulos dentro dos vocábulos. Como filhos e fogo bifurcado. Descobri que o alfabeto não era a respiração da professora, mas existia antes dela. O alfabeto e a árvore da água. A chuva foi a folhagem daquela manhã em que passei no ditado e não comemorei. Orgulhoso, esperei o piso se acalmar. Eu já sabia o meu lugar.

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