sábado, 10 de janeiro de 2004

ENTREVISTA

Poemas datilografados com suor e espuma

FABRÍCIO CARPINEJAR/ Jornalista e poeta, autor de Caixa de Sapatos (Companhia das Letras, 2003)




Armando Freitas Filho: sua poesia tem a estranha paz de estar em guerra

Foto(s): Paulo Jabour, divulgação/ZH




Leitor inveterado de dicionários, hábito herdado do pai, Armando Freitas Filho, 63 anos, é inquieto, procurando incansavelmente um novo jeito de contestar os hábitos. Não transforma o poema em confessionário pessoal, exorciza o texto, no meio de um fogo cruzado entre uma linhagem mais clássica e outra coloquial e lúdica. Premiado com o Jabuti/1986 e Alphonsus de Guimaraens/2000, da Biblioteca Nacional, Freitas Filho completa quatro décadas de poesia em grande estilo. A Nova Fronteira lança Máquina de Escrever, obra reunida e revista, com 12 livros publicados e o inédito Numeral, Nominal. "Sou o autor mais antigo da Nova Fronteira, não o mais velho", brinca.


Morando no recolhimento carioca da Urca, Freitas Filho é um escritor de ouvido. Contrastando com a poética plástica de Ferreira Gullar, fecha os olhos e recorre à cegueira sonora. Um rapper na poesia brasileira, passando por cima da marcação cronológica e da disposição tradicional. posturas e provocações. Escreve apesar da literatura, desenvolvendo a quebra sintática e rítmica. Voz com fôlego de rádio, "ligada na freqüência do mar", arfa pela vida sem pontuação. Desde 1963, sua poesia é sinônimo de permanente crise, atravessando o sinal vermelho. Não se ajeita a nenhum lado da linguagem. Seus livros emancipam detalhes banais em princípios estéticos. Retira inspiração de uma missa fúnebre para nomear o volume De Corpo Presente. Como Godard, o segundo plano é o mais relevante. Adere ao caos, descrevendo a turbulência dos encontros e traduzindo o idioma entre os corpos. Não elabora uma lírica contemplativa, parada, porém imbuída de um movimento orgânico. Algo como um exaustor, que puxa as vivências com voracidade, renovando o ar viciado. Não parte, nem chega a algum lugar, alegra-se em seguir em trânsito. Tem a estranha paz de estar em guerra. Os livros começam acelerados para desacelerar ao final.


Em entrevista ao Cultura, o poeta saca versos para assustar o destino.


Cultura - Você completa quatro dé cadas de poesia. Está lançando agora a antologia Máquina de Escrever, composta de 12 livros editados e um inédito. Levando em conta Fio Terra (2000), você valoriza o registro, a rasura, a rapidez do diário, o fluxo instável do cotidiano. Você pretende cada vez mais retirar os intermediários do poema, você que ficar cara a cara com o leitor?


Armando Freitas Filho- Ficar cara a cara com o leitor é ficar cara a cara com ninguém. É assim que deve ser. Pelo menos é assim que entendo. Mas este ninguém acaba sendo alguém, que me lerá com os olhos de ninguém. Maria Betânia Amoroso disse que escrevo na linha da arrebentação. Gostaria de acreditar nisso, até porque é belo, como imagem. Mas, sinceramente, não me vejo com essa coragem, até porque não sei nadar. Portanto, estou aquém da arrebentação, sem competência para enfrentar o mar alto e aberto. A poesia, como eu a pratico, é um lugar, em princípio, não marginado. Diria até que é o lugar do mar alto e aberto, supracitado. Mas se eu não o alcanço, sempre posso pescar algo, algas que sejam, mas que me trazem a informação, alguma coisa da constituição desse ambiente em abismo, grandioso, e que eu, então, minimamente, traduzo ou tento.


Cultura - Poderia se dizer que sua escrita sem ponto final, espécie de voz corrida de rádio, procura ser fiel à vida ao trair a própria literatura ("o sujo das unhas têm um toque de arte-final"), no sentido de não se subjugar à escrita canônica?


Freitas Filho- Não tenho a sensação de trair a literatura para ser fiel à vida, já que sempre as vi entrelaçadas. Meu impulso ao escrever não é o de não me subjugar ao cânone e sim de buscar, nesse cânone, um lugar possível para minha voz, por mais exíguo que seja, e, finalmente em vista de tudo isso, não me vejo escrevendo contra a literatura, mas apesar dela, da literatura boa que existe, e que, por isso, dá vontade de desistir. A sensação é de trabalho pesado, como dizia Clarice Lispector: "Escrever é duro como quebrar rochas".


Cultura - Você menciona esse ímpeto de desistir. Já passou por fases de renúncia e de entressafra, em que pensava que a obra estava concluída?


Freitas Filho- O ímpeto de desistir se confunde um pouco com o ímpeto (creio eu), de se matar, que é comum à condição humana. Até agora nunca passei por fases de renúncia ou entressafra, o que deve ser terrível. Valéry, por exemplo, se não me engano, ficou 10 anos sem escrever poesia, inteiramente bloqueado. Deve ser trágico. Mas quem sabe, para certos temperamentos, essa experiência não seja necessária?


Cultura - O inédito Numeral, Nominal parece um desdobramento de Números Anônimos (1994). A ligação é consciente?


Freitas Filho- Parece, mas não é. Este título Números Anônimos foi inspirado no opúsculo de Cláudio Manuel da Costa, Números harmônicos - Temperado em Heróica e Lírica Consonância, poema escrito quando o poeta estava em Lisboa e que não consta, junto com outras peças da mesma época, das suas Obras. Segundo os estudiosos de Cláudio Manuel, ele mesmo na hora da edição de sua poesia os teria rejeitado. Esses textos são dados como perdidos. Já Numeral, Nominal é a divisão do meu livro inédito em duas partes. Na primeira, vem, de enfiada, os poemas apenas numerados. Essa série continuará nos próximos livros que me for dado fazer: ela acaba quando eu acabar, pelo menos é o que eu penso hoje. Os poemas vão até o número 31, nesta coletânea, e têm um caráter investigativo, problemático, digamos assim. Já a outra, Nominal, é francamente temática: os títulos "fecham" mais o escopo da composição. Não obstante esta distinção, às vezes, há uma "contaminação" dos campos, isto é: eles se "visitam".


Cultura - Com a poesia reunida, você voltou os olhos ao passado. Qual a sensação de revisitar o percurso (teve espanto ou comoção ou desconfiança?), o que evidenciaria no auto-retrato?


Freitas Filho- Não tive espanto ou desconfiança. Comoção seria uma palavra forte demais. Posso dizer que tive saudade de mim ao rever meu primeiro livro, Palavra, escrito entre os 20 e os 22 anos, e publicado aos 23. A sensação, portanto, nada teve de literária, foi mais de cunho existencial, psicológico. Quanto ao auto-retrato, ao rever todos os meus livros para a edição de Máquina de Escrever, não me senti nenhum Dorian Gray, o que já é um ganho. Em outras palavras: foi como enfileirar vários retratos 3x4 que você vai tirando ao longo da vida e constatar o óbvio: que o tempo passa. E outra coisa menos óbvia: que nem sempre é para pior.


Cultura - Já em sua estréia Palavra (1963), você antecipava que "o espaço devora o movimento". Alheia aos cartões-postais, sua poética canta com ardor o Rio de Janeiro, vivendo todas as contradições e rumores da cidade?


Freitas Filho- De fato, o Rio de Janeiro permeia o que eu escrevo. Sou um ser litorâneo, que sempre viveu perto do mar, com o horizonte à vista. A cidade aparece, eu diria, por entre frestas, com sua beleza terrível, tantas vezes acossada pelo horror. Nem ela nem nós, afinal de contas, somos à prova de bala.



(Jornal Zero Hora, caderno Cultura, Porto Alegre (RS),10/01/2004, Edição nº 14019)

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