terça-feira, 20 de janeiro de 2004

A PRIMA DA MOSCA-MORTA

Fabrício Carpinejar


na política, é gasta a expressão caiu a máscara. panfletos de última hora costumam tentar desmoralizar a partir unicamente da confusão. nada de dados, fatos e provas. insinuações. a maldade unicamente insinua. não é capaz de ter sobrenome ou endereço. o porta-voz da agressão também não costuma ter sexo, mas se dispõe a atuar em raiva desorganizada, laranja recusada tanto pelos insetos como pelo sol, tanto pela boca como pelo caroço, projetando fora o que está apodrecido dentro. "minhoca invejosa" é um termo bem simpático para definir essas criaturas escuras que não se suportam sozinhas. tentaram atingir o grau de maldade das cobras, mas não têm talento e arte para administrar o veneno. são minhocas que não "arejam a terra", como sugere o grande Manoel de Barros. são minhocas usadas como iscas para perecer no interior dos peixes, com uma cultura feita para isolar e agredir, nunca somar e compreender. uma cultura egoísta e enciclopédica, inútil e ligeira, que desce ao final com a urina. uma cultura que fala e não escuta. a covardia da minhoca está em não apresentar seu trabalho, mas apenas boiar no trabalho dos outros. no lugar dos olhos, encontram-se aspas. como ela não consegue fazer nada, ela tampouco deixa os outros fazerem. pretende instaurar a democracia da mediocridade, sob alegação de uma crítica consistente. é severa com os outros, desde que anônima, excessivamente tolerante com suas falhas, desde que anônima. passa o dia inteiro catando a próxima vítima até chegar seu próprio dia. exercita o ócio dos defeitos. a minhoca invejosa teme a sensibilidade, não pode se emocionar, prefere textos-cabeças de minhoca, se acostumou com o mau hálito de sua voz, indecisa entre sair e entrar na adolescência. a "minhoca invejosa" é prima da mosca-morta. diferente de sua prima que se finge de morta para passar bem, ela está efetivamente morta e se finge de viva. não lê, exuma. não lê, se enterra. não lê, acumula detritos e sucatas.


assim intelectuais aparentemente inofensivos se tornam agressivos em bando. lincham autores que nada fizeram, sob o escudo de uma torcida de futebol ou de um lista de discussão, e depois voltam para casa, desobrigados com o destino, a segurar suas crianças no colo.


só que a poesia não é política. não se está votando quem é o melhor ou o pior, não se está numa monarquia ou no extinto Chacrinha para procurar alguém ao trono. o leitor não quer saber nada além de seu instinto, de sua fome ancestral, em converter o dia em um ventre menos estreito, em uma parede menos áspera. quer desaprender os costumes. a minhoca invejosa pensa que fala por todos. quem fala por todos fala por ninguém. quer explicar ou teorizar sobre aquilo que não foi vivido, mas não adianta amansar o mar com explicações. o mar fala arrombando a si mesmo, destroncando o osso de sua própria altura. quem vive alcança a metáfora. quem não vive vai praguejar, ofender, amaldiçoar, pregar suas verdades como versículos numerados. quem não vive vai gritar sem conseguir convencer ao menos o corpo. a intolerância tem apressado a cadeia alimentar das minhocas. ou partimos para a solidão em grupo (o pior dos isolamentos) ou respeitamos as diferenças e tentamos entender a mensagem que não foi escrita pela vaidade de nossa letra. pela lógica, há mais lugar fora da cova do que dentro dela. apenas a minhoca defende o contrário.


a poesia brasileira precisa de algo extremamente simples: confiança, estima, fé. não aceitar mais que se diminua um espaço de linguagem que já é reduzido com raiva e antropofagia. não cair na cilada arrogante de classificar e dizer quem é superior. ao invés de insuflar o ódio entre os poetas, apresentá-los, diminuir as cercas, aparar o limo da escada, dar ao verso a possibilidade de dormir fora de casa.

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