quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

RESUMO DOS OLHOS

Gravura de Joan Miró


Fabrício Carpinejar


Eu definia as pessoas pelas suas sobrancelhas. Na infância, não era de enxergar formatos e figuras entre fileiras de nuvens e tapume de estrelas. As sobrancelhas me resumiam. Sobrancelhas falhadas davam uma noção de temperamento triste, introvertido. Sobrancelhas emendadas passavam um sinal de arrogância. Sobrancelhas grossas, como um cavanhaque, demonstravam indecisão. Sobrancelhas pinçadas mostravam dupla personalidade, o que não é ruim. Sobrancelhas com um leve traço de nanquim prometiam humildade. Sobrancelhas que contornavam metade dos olhos figuravam como teimosia. Sobrancelhas direcionadas para os ouvidos revelavam generosidade. Desenhava sobrancelhas em meus cadernos. Uma sucessão delas, como um alfabeto invertido, papel vegetal. Nos rostos, adivinhava guarda-chuva, foice, travesseiro de penas, corrimão, caixa de música, secador de cabelo, bumerangue. Cortava a grama de casa pensando estar jardinando sobrancelhas. Na espera do barbeiro, com as revistas velhas e ressequidas de suor, cronometrava a tomada de espelhos e descobria que a mudança de corte não diminuía a personalidade das sobrancelhas, não abafava seus segredos, não camuflava as intenções. Podia-se raspar a cabeça, mas as sobrancelhas ainda denunciam a verdadeira identidade. As samambaias imitam as sobrancelhas. Os cães e gatos respeitam os donos segundo suas sobrancelhas. Ler as sobrancelhas é como estudar a caligrafia. A sobrancelha é uma assinatura espontânea, de mão trocada. Quando não entende algo, ela sobe o degrau. Quando entende, ela deita. Tanto que eu escrevia errado a palavra: sombrancelhas. Demorei a entender que ela não fazia sombra nenhuma.

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