sábado, 24 de janeiro de 2004

EU VI

Gravura de Cy Twombly


Fabrício Carpinejar


Viver não é obrigação. Lembro de um relojoeiro que adiantava três minutos de cada relógio de seus aposentos. Ele chegava na mesma hora em todo canto da casa. Os olhos miúdos - difícil definir o tamanho atrás dos óculos de garrafa verde. Eu usava cacos de garrafa verde para queimar formigas. O sol sentava no vidro e dispersava o formigueiro. Viver não é emprego, ele ralhava. Eu decorava meus vizinhos pelas frutas dos pátios. Roubava bergamota, laranja, carambola, pitanga, amora. Não recomendo minha idade, ele xingava. Eu me conheci tardiamente. Podia ter me adiado mais. A noite é faladeira, por isso que sentimos sono. O dia não, o dia escuta, sábio e severo. O dia não imita a criança. A pior coisa é adulto imitando voz de criança. Adulto acredita que ganha a confiança de criança como um idiota. Viver é escolha, dizia o relojoeiro, com as pupilas adiantadas três minutos, tempo necessário para atravessar os óculos de garrafa verde.

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