sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

NÍQUEL



Gravura de Jean Fautrier


Fabrício Carpinejar


Ela se levantava às 7h e saía a rastejar o olhar pelo chão. Percorria toda São Leopoldo em busca de moedas. Colocava o chapéu da roça e sorria até o meio do sorriso e não terminava o sorriso nunca, na metade ficava e voltava e ria de novo. Já tinha seus 70 anos, mas não se professava em números. O rosto de bolacha maria embebido no café. Bondoso como um hábito antigo. Os tênis de lona, mais meia do que couro. Ela canteava o meio-fio. Não avançava na calçada ou na rua. Intermediária entre os dois mundos. Levava uma sacola de supermercado para ir colocando seus achados. Quando fitava uma moeda grudada no chão, pegava uma espátula e gritava: "Níquel". Parecia levantar pão do forno. "Eu fiquei louca porque me acharam louca", me disse. "Eu fui louca pelos outros, não por mim." Vivia no asilo. Quarto azul como seu leque de missa. Azulava o corredor com suas mechas brancas e definitivas. Colecionava o desperdício dos apressados. Procurava pentes com dentes inteiros. Tinha uma lona de pentes coloridos catados no solo. Havia dois pentes banguelas que não colocou fora para não ser preconceituosa. "Senão vão dizer que não dou valor aos quebrados da vida." Não importava o acúmulo do sol. Ela e seu chapéu de palha faziam curva na sombra. Voltava às 9h. Lavava as moedas e pentes na torneira e subia ao quarto azulado como o leque da missa. No aposento, guardava dez baldes cheios de moedas: cruzeiros, cruzados, reais, recolhimento de suas andanças. "Não ponho no banco, aqui é mais seguro. Moeda não apodrece como o homem", afirmava. Transbordava metal entre o banheiro e o ventilador. "Níquel", ela exclamava. Entrou no asilo aos trinta anos. Confundiram depressão pós-parto com doideira. Em estado de choque, tentou machucar o filho recém-nascido. A família não perdoou. Nem ela se perdoa. "Um dia terei dinheiro para comprar toda minha loucura. À vista."

Nenhum comentário:

Postar um comentário