segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

SER LONGE

'Ser Longe', a poesia como aventura mínima

Em sua estréia poética, Fernando Moreira Salles inverte a lógica de passado, presente e futuro


FABRÍCIO CARPINEJAR

Especial para o Estado


Ser longe (Companhia das Letras, 79 págs., R$ 26) revela-se uma aventura mínima, delicada e intensa que transforma o tempo em espaço e geografia adulta. O título se articula como um epíteto de mais vida, descendendo da estrofe do livro "Lembrar é ser longe". Recordar, portanto, não é estar distante, mas incorporar a distância. A diferença entre ser e estar já caracteriza a operação musical dos poemas, feita de precisão expressiva, lances concentrados e gestos breves, à maneira do italiano Giuseppe Ungaretti. A poesia é flutuante, esférica, seca como um guache, não úmida como tinta a óleo. Extremamente dispersiva em função da noção dilacerada da transitoriedade. "Meu olhar é disperso,/ não mostra o que piso."


Ilustrada por linhas e curvas sensuais da artista Iole de Freitas, a obra refaz o percurso do homem imerso na evocação, reconhecendo a si ora como um menino, ora como avô de suas imagens. O conjunto se predispõe mais ao silêncio do que a reza. Os nomes religiosos dados aos poemas, como Oração e Confiteor, enganam à primeira vista. Declaram a dependência do alto com o raso e denotam uma falsa interlocução com Deus, que é apenas chamado para confirmar as dúvidas. A postura autoral não é sacra, mas desconfiada.


Transcrever as experiências significa rejeitá-las novamente. Uma voz só terá vez quando calada. "Não tenho outra voz/ além da que calo." A ironia surge sutil aos ouvidos treinados como no poema O Chumbo, um pequeno retrato da negação afirmativa da ditadura militar: "Bem lembro/ pediam nossos documentos/ nas ruas, aeroportos, estações/ nos revistavam,/ prendiam, interrogavam/ e às vezes/ torturavam e matavam./ Mas só/ às vezes."


O poeta mais se mostra no que esconde. Refuga o destino como bagagem, muito menos procura repassar sabedoria naquilo que está dizendo. Sua consciência extremada não permite purgatórios e revisões de sentenças, desdenhando da nostalgia e do tom melancólico. São duas realidades conversando sem apagar a distância irredutível. O que está feito fica-se. "Não temos destino/ nem queremos chegar."


Apesar da estréia em versos (há dez anos havia publicado a peça Memorando com Geraldo Mayrink), não se verifica um escritor afirmando sua individualidade e balbuciando confissões de seu duelo com a página em branco, características de grande parte dos iniciantes. Percebe-se, de saída, um escritor maduro, com um filtro existencial que tudo pesa antes de soltar em significação. Como diz Antonio Candido, abre um "universo cheio de flutuações de sentido, que vão pouco a pouco impregnando a sensibilidade e criando o desejo de releitura". Tal como pássaro que cisca os próprios vôos, o autor habita a passagem e não guarda nada além das asas e do vento. Seu olhar é mental, de quem sobrevoa, porém não interfere. Passa e aceita. Revê e não salda as contas. Um morto na janela.


Santo Agostinho entabulava a linha temporal em três virtudes. O passado equivaleria à memória; o presente, à experiência; e o futuro, à expectativa. Moreira Salles inverte essa lógica. O passado torna-se expectativa e o futuro vira memória. "Mais medo, aquele/ de ainda lembrar." Dessa forma, avança retornando. Olha o que aconteceu com a mesma palpitação e respiração ofegante de sua infância, em assombro que não é covardia. Ao dizer uma palavra pode apagar a lembrança. Arrisca. Faz da poesia um esquecimento alegre.


* Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de "Caixa de sapatos", "Biografia de uma árvore", entre outros.


(Jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, pg. D-5, 12/01/04)

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