segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

NO GUAÍBA



Gravuras de Iberê Camargo


Fabrício Carpinejar


A luz como uma tecelã cortava as unhas da grama, trançava os fios do cais, aproximava os telhados. Não havia a pressa da carne. A noite da pressa. Os pintores De Chirico e André Lothe estavam no outro extremo da margem, inertes, com a caspa do rio aos ombros. "Por que não fala com eles?", perguntei para Iberê. Suas sobrancelhas cresciam ao pensar. O paletó azul combinava com o cheiro adocicado do rio Guaíba. "Aqui rasga-se o som em um gesto e demora uma vida para refazê-lo." Ciclistas pedalavam em torno dele. Em voltas rápidas, inclinados. Iberê abriu sua caixa de ferramentas como a de um marceneiro: retirou cordas, pincéis, carretéis, bobinas, elásticos de calças. "Deformar a matéria é deixar a matéria retornar a sua forma original antes do uso. Não podemos deformar em excesso, senão parece mentira. Junto os cacos cuidando para que cada peça não perca a individualidade da queda.". Iberê apanha o chapéu para despistar o sol. Suas unhas estão sujas de tinta. "Já percebeste que as tintas têm a mesma textura do excremento das aves?" "Não", respondi para ele continuar. "A pintura nada mais é do que o estômago de um pássaro." Em um tom grave, incomodado com a ronda dos ciclistas, toco no braço dele: "Por que não avançaste na morte?" Ele solta uma gargalhada: "Morte? Deus anda distraído."

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