quinta-feira, 15 de janeiro de 2004

TRIBUNA DO BRASIL

Deu no jornal Tribuna do Brasil, caderno saber, Brasília (DF), 11/01/04:


"Minha ambição é encontrar o que eu escondo de mim. Me denunciar sem piedade."


A fome do poeta



Foto de Rodrigo Rocha


Fabrício Carpinejar, um dos mais importantes escritores contemporâneos do país, fala sobre a antologia Caixa de Sapatos, lançada ano passado, e sobre seu novo livro, que sai em abril


Mateus Baeta


O ano de 2003 consagrou de vez o jovem poeta gaúcho Fabrício Carpinejar. Com quatro livros publicados - o primeiro, As Solas do Sol, em 1998 -, Fabrício há muito deixara de ser grande promessa para tornar-se autor premiado, inclusive internacionalmente. Mas em 2003 sua poesia alcançou respaldo de todos os lados: ele ganhou o prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, lançou uma antologia pela Companhia das Letras e imprimiu seus versos até em agendas diárias.


Aos 31 anos, Carpinejar é um dos grandes nomes da poesia brasileira contemporânea. Filho de poetas - Maria Carpi e Carlos Nejar -, o escritor, que é também jornalista, uniu os sobrenomes dos pais e passou a cantar com voz própria. Carpinejar, de fato, bem poderia ser verbo, querendo significar: render-se ao compromisso inadiável do fazer poético. Como ofício, uma aproximação da carpintaria, do carpintejar, no que ele tem de meticuloso.


A obra do autor, que recende Manoel de Barros e Jorge de Lima, é defendida por gente como João Gilberto Noll e Carlos Heitor Cony. Com profusão de metáforas e imagens, a poesia de Carpinejar é lúdica ao extremo, e a toda hora brinca com a lógica e suas convenções. Caixa de Sapatos, a antologia, é exemplo perfeito. Além de As Solas do Sol, reúne versos de Um Terno de Pássaros ao Sul (2000), Terceira Sede (2001) e Biografia de Uma Árvore(2002). Como ele conta, todos os livros giram em torno do personagem Avalor, mas abrigam uma grande multiplicidade de vozes. "Não sou unânime para te dizer sim/ Dissidências me governam", diz um dos textos.


Na entrevista abaixo, Carpinejar fala com exclusividade sobre sua obra, novos meios e sua visão da poesia. O escritor também conta como será seu novo livro, Cinco Marias, e adianta dois poemas inéditos que farão parte da obra.


Entrevista : "É preciso despertar a poesia do cotidiano".


Tribuna: Fale um pouco sobre o ano passado, sobre 2003. Foi um ano muito importante pra você, certo? Quais são as expectativas para 2004? Muda alguma coisa?


CARPINEJAR: Aumenta minha exigência, a vontade de aproveitar esse facho para mostrar que a poesia não é só uma pessoa, mas vários novos autores que estão esperando uma chance para aparecer e mostrar seu trabalho. Não quero que minha poesia sirva para a vaidade, mas para desaparecer e fazer que o texto seja cada vez mais visto. Não tenho expectativas, mas fé na literatura como insubordinação aos costumes herdados. O que eu imaginei é memória dos outros. O que eu vivi é imaginação dos leitores.


Foi lançada uma agenda com a sua poesia, com fotos turísticas e os versos espalhados pelas páginas. É preciso levar a poesia ao cotidiano?


CARPINEJAR: Sim. É preciso despertar a poesia do cotidiano. Ela já está ali, mas os escritores costumam complicá-la em livros. Borges costumava usar uma ironia: quem não consegue sentir poesia é justamente quem vai tentar ensinar poesia. Parece que queremos ler apenas para passar o tempo. Poesia é quando a gente lê para prender o tempo, feita para incomodar, acender desejos extintos, provocar os detalhes e converter a apatia anêmica da pressa em atenção amorosa com as coisas e seres.


Você concorda que a sua poesia, de metáforas escorregadias, antropomórfica, é corpo estranho entre a produção contemporânea? Como você se insere no contexto atual?


CARPINEJAR: Minhas metáforas são escorregadias? Talvez porque elas acabam trabalhando e suando perto do fogo. Minha intenção é fazer com que a poesia seja a caixa de sapatos do leitor, onde ele poderá reencontrar seu passado até descobrir que sua vida não foi em vão. Sou um porta-voz do que ainda não aconteceu. Minha maior influência é o que não li. Meu estilo foi determinado pela asma da infância. Nunca consegui fazer cartas longas, porque a tosse cortava o assunto e me proibia de levar as palavras mais adiante. Tive que ser breve, fulminante e verdadeiro. Não presto para enrolar. Eu sei enxergar a beleza, mas sou preguiçoso para explicar. Poesia é quando vamos direto ao assunto, com a mesma urgência de uma despedida.


Em Caixa de Sapatos, dá para perceber mudanças significativas nesses cinco anos passados. Como a antologia se encaixa na linha evolutiva de sua obra? E em que medida ela aponta direções?


CARPINEJAR: Pretendo apanhar a dimensão espiritual do tempo, mais do que a duração cronológica. Eu me interesso pela percepção afetiva. Faço uma narração por imagens, recolhendo diferentes pontos de vista de uma experiência. Eu me coloco ora como um pai, ora como um filho, ora como um velho, ora como uma mãe, para compor diferentes visões de uma mesma cena. Não quero ser sectário de minha voz, mas sair de minhas crenças, entender o que as outras pessoas sentiram e o que deixaram de sentir. Flagro várias salas e quartos de uma casa, como uma câmera aérea. Elaboro, portanto, uma visão prismática de mundo, uma composição romanceada. Cada livro é um capítulo desse romance em versos. Caixa de sapatos aponta para essa unidade. Meus livros estão se completando automaticamente. Cada um segue o anterior e repõe o que a obra deixou de falar. Percebes o caráter lúdico. Procuro explorar a contradição, a negação, a ironia. Às vezes falo sério porque estou rindo. Outras vezes, falo rindo o que me dói. Exponho a vida de uma maneira passional, quase selvagem. Literatura é fome, se come com as mãos, sem a formalidade dos talheres. Circulo no clima de fábula. Meu núcleo são as relações familiares. Tanto que me projeto no futuro para voltar ao passado. Todos os meus livros giram em torno do personagem Avalor, um homem que continua vivendo porque não conseguiu um lugar seguro para morrer.


Além de um site na Internet, você mantém um blog que é atualizado quase diariamente. Como é a sua relação com o meio virtual?


CARPINEJAR: O blog funciona como um vestíbulo da poesia, em que faço anotações, mínimas e tiro proveito do caráter transitório do veículo para perdurar idéias e pressentimentos. Seu funcionamento é como um jornal em que edito minha vida, especialmente a biografia que não vivi. Me invento tanto que tenho medo de perder as verdadeiras lembranças (risos) É também uma maneira de desmentir a pecha de que o blog é um diário de bobagens dos adolescentes, uma coluna social, e afirmá-lo como uma ferramenta que pode democratizar o conhecimento e divulgar escritores. A juventude tem o que dizer, deve ser ouvida, tanto que encontrou sua expressão literária na internet.


Por fim, fale de Cinco Marias, seu próximo livro. Como será? Tem previsão para ser lançado?


CARPINEJAR: Cinco Marias será lançado em abril. É a continuação de Biografia de uma árvore, agora com a família do Dr. Ossian, médico que considerou louco o personagem Avalor. Pode ser lido tanto como uma seqüência como individualmente. É meu livro feito somente com personagens femininos. As mulheres tomam a cena, mostrando que os homens ainda não chegaram nem perto de entendê-las. Eles fingem que sabem, elas fingem que concordam. É o diário de cinco vozes - a mãe e as quatro filhas. O leitor terá que descobrir pelo temperamento quem está falando. Não entrego as falas nem faço pontuação teatral. Como o jogo infantil, as pedras vão se acumulando nas mãos até que todas sejam esclarecidas em um único arremesso. É um longo poema de versos curtos. Mexe com as aparências. Parto do princípio de que se fala mais para esconder alguma coisa do que para mostrar. Um pensamento somente é escolhido para ocultar as verdadeiras intenções. Em tudo na vida, há essa cabra-cega. Minha ambição é encontrar o que eu escondo de mim. Me denunciar sem piedade.


Inéditos de Cinco Marias

Fabrício Carpinejar


A honestidade é antipática.

As pessoas que são justas,

discretas, comportadas,

netos ao colo, casos arquivados,

não rendem literatura.

A impureza emociona.


* * *


Conheci uma mulher

que sobreviveu a uma bala perdida.

Atravessei a nado seu silêncio,

as escamas de chumbo,

o orvalho negro,

o milagre esfriando.

Nenhum comentário:

Postar um comentário