quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

PORÃO E ÁGUA-FURTADA

Gravura de Raoul Hausmann


Eu queria morar em uma água-furtada, assoalho de Deus. Nunca encontrei um quarto no alto, entre árvore e ave, rente à camada assustada de lago do telhado. Meu avô tinha um porão. Minha casa da infância tinha um porão. A unidade do porão feita de trastes e pertences vencidos, de garrafas, vidros de conserva e peças desativadas, de gaiolas e escadas. Coerência na mais pura desordem. O porão dorme pensando morrer. Um sonetista, vizinho antigo, deixava seus poemas no subsolo da casa. O rosto severo e os olhos aflitos, como moscas transtornando a pele. Ele escrevia, não lia, tirava com raiva a folha da máquina, descia a escada e botava o poema lá embaixo como um jornal do dia anterior. Eu perguntava os motivos do desprezo: "minha literatura é pior do que fazer tricô. Não serve para ninguém vestir depois". Viveu inédito até para sua esposa.

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