sábado, 17 de janeiro de 2004

HISTÓRIAS DO TREM

* Vou indo no trem lotado, de pé. Desde que decidi ser educado, haverá uma senhora disposta a sentar. Em uma das estações, entrará alguém com mais de sessenta anos com o rosto de poltronas azuis. É certo. Levanto as sobrancelhas, faço o sinal e finjo que a paisagem corre melhor daquele jeito. Sento somente na última estação, por três fugazes minutos. Em minha frente, um jovem retira o garfo do bolso esquerdo e a faca do direito. O guardanapo está no bolso interno. Estala os ossos, coloca a térmica aos pés e abre uma farta marmita. Ao seu lado, a menina vira a cara para a janela com desgosto. Ele começa a comer um feijão ainda soltando fumaça. Como uma águia que lambe as patas em pleno vôo. Já havia visto gente devorando sanduíches e lanches no trensurb. Pela primeira vez, assistia um passageiro dando conta de um prato de três camadas geológicas. Mastigava com devoção. Respirava e ria. Talvez os dois juntos. Não conseguia desgrudar os olhos de sua bandeja. Ele poderia ter dito como censura: "o que está olhando?". Não foi o que escutei. Com um jeito sincero, perguntou se eu queria um pouco.


* Outra noite, voltando para casa, entrou no trem um senhora com uma vela acesa. Tinha a postura de aia tardia ou de primeira comunhão. A chama se agachava e subia nervosa, no vaivém irritante de chuvisco de tevê. Ela sentou reta, cuidando excessivamente com a coluna dela e do fogo. Um segurança passou pelo setor e pediu que apagasse a vela. "Não posso apagar uma promessa", replicou. "É como não pagar uma dívida". Ela falava bem, com um português de domingo. O segurança insistiu: "ninguém fuma no trem". "Eu não estou fumando, senhor. Não há nenhuma ordem que proíba carregar velas acesas aqui." Ele se calou e ficou ali, com seu colete de mangas cavadas. Não suportou a tensão da curiosidade: "Que promessa a senhora fez?". Ela não respondeu. Desceu na primeira parada e entrou em outro vagão.

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