sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

CASA DO DIABO



Gravura de Frida Kahklo


Fabrício Carpinejar


Ainda quero ser contemporâneo de minha alegria. Não precisar voltar para criar o que não existiu. Na primeira reforma da casa de minha infância, destruíram as paredes. Abriram um valão no pátio. Entre os encanamentos e a terra vermelha, fazíamos competição para atravessar o inchaço da chuva. Os chinelos azuis e amarelos funcionavam como barcos. Córrego de lâmpadas na chuva. Os homens derrubaram o abacateiro naquele dia e comecei a andar encurvado. Minha altura era mais dele do que minha. Havia um poço artesiano no pátio. O poço tinha mais barulho de água quando secava. O meu irmão me dizia que o pinheiro do vizinho era a casa do diabo. Arredava o pé daquela zona. Eu acreditava muito no que meus irmãos diziam. Tanto que não me desmentia. Durante uma semana, moramos em um hotel na própria cidade até terminar a casa. Ficamos no Majestic, hoje Casa de Cultura Mário Quintana. Na chegada, admiramos uma banheira enorme, branca. Minha irmã mais velha falou que parecia o lugar onde Jim Morrison morreu. Não sabia quem era Jim Morrison, mas não queria tomar banho. A casa do diabo passou a ser a banheira branca. Eu me sentava quando a dor do lugar era intensa. A dor fica de pé quando sentamos. As tolhas enormes serviram para me enrolar de múmia. Faltavam cobertores nas noites altas. Nas manhãs, sem nada para destruir, buscava latas para queimar folhas no terraço. Minha maldade escolhia alguns insetos para o sacrifício. O fogo era um peixe retirando suas escamas. Eu ainda tenho escamas antigas. Uma criança nunca suporta que uma ferida cicatrize inteira. Mexe até sangrar. Um adulto nunca suporta que uma lembrança cicatrize inteira. Mexe até sangrar. Minhas mãos estalam como ervas. Queria estalar os dedos com barulho. Ao longo da vida, não parti, apenas me desloquei. Eu acumulo coisas e trastes, jornais e revistas durante anos. Guardo como se a despensa fosse um museu. De repente, jogo tudo fora sem compaixão com o esforçado zelo. Eu não acumulo minha sobrevivência.

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