quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

RELÂMPAGOS

Gravuras de Raoul Hausmann


O poeta Konstantino Kaváfis dizia que a mentira era a velhice da verdade. A mentira é a juventude da verdade. Ela se entrega pelo ímpeto desmesurado, pela ambição de ser maior do que sua origem. Fica decorativa se não apresentar uma ligação com a vivência. Eu não gosto das coisas diretas, das conversas diretas, dos amores diretos. Não confirmo as datas das lembranças, nem coloco o ano e o lugar debaixo dos poemas. Estou fora de mim faz tempo. O que foi imaginado aconteceu. Minha experiência acontece antes de acontecer. Tinha um amigo que só tirava fotografias do lado esquerdo. Afirmava que ficava menos feio. Irritava-me sua postura sempre de lado nas imagens. Eu sou o lado direito da fotografia, a carnação da cor, uma cor pastando, desajeitando sua textura com outra tonalidade. Minhas pupilas aparecem vermelhas e não se entregam sem desafiar o foco. Eu não me entusiasmo com a literatura. Eu me entusiasmo com a falta da literatura. Escrevo a falta da literatura. Quem se exulta demais com o que faz é servo da memória. Talvez a vida seja muito mais o que a gente nega do que aquilo que se afirma. Negar é aceitar que ainda não nascemos, assim como estilo é quando o corte não dói mais, assim como a morte impede o homem de ser superficial. Não conto segredos sem receber segredos em troca. Trocar segredos é mentir acompanhado. Eu admiro os relâmpagos. Essa luz dada de graça nas paredes do quarto com rádio dentro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário