sábado, 24 de janeiro de 2004

REVISTA CARTAZ

Deu na Revista Cartaz, Ano IV, Nº 12, dezembro/2003 e janeiro/2004:


Literatura


Agricultor de violinos

O poeta Fabrício Carpinejar escreve com o vigor de quem escava palavras para fazer brotar música


Christina Lima e Paulo Vasconcellos

Foto de Renata Stoduto/divulgação



O trabalho do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar é quase de destruição. Um esforço tenso para que os versos não resistam, até que o texto não possa esconder mais nada e a palavra se transforme em assobio, em estranha melodia difícil de apagar da memória. Quase como um agricultor de violinos. "A caneta é minha pá", diz.


A produção do poeta é celebrada pela crítica desde a estréia com o livro As solas do sol, em 1998, lançado pela editora Bertrand Brasil. Os elogios continuaram louvando a qualidade das metáforas de Um terno de pássaros ao sul, de 2000, Terceira sede, de 2001, e Biografia de uma árvore, de 2002, todos publicados pela editora Escrituras.


A celebrada antologia Caixa de sapatos, editada neste ano pela Companhia das Letras, vai pelo mesmo caminho. Aguarda-se ansiosamente Cinco Marias, que já está no prelo para ser lançado em abril.


O sobrenome artístico veio da fusão de outros dois não menos famosos: o do pai, Carlos Nejar, integrante da Academia Brasileira de Letras, e o da mãe, a também poeta Maria Carpi. O rosto alongado, estranho, aparentemente triste, às vezes lembra uma figura de El Greco. "Me descobrir feio me libertou", diz Fabrício Carpinejar sem nenhuma autocomplacência. "Eu não tinha mais nada a perder. O feio é deliciosamente inconseqüente."


O poeta, nascido em Caxias do Sul, na região serrana gaúcha, hoje mora em São Leopoldo, cidade que instituiu o Prêmio Carpinejar de Literatura, com a mulher, Ana, os filhos Mariana e Vicente, e procura fugir ao estereótipo de que poesia deve inspiração à boêmia. "Um domingo em família é melhor do que a eternidade. Até as brigas são engraçadas e insubstituíveis."


Em Caixa de sapatos, releitura dos textos retirados dos quatro livros anteriores, Fabrício Carpinejar modificou todos os poemas e deu-lhes um certo frescor de ineditismo. Para isso, foi preciso abrir mão dos desdobramentos do enredo, característica da literatura de Carpinejar, já que os livros contam em versos a saga do personagem Avalor e suas ramificações no mundo.


Desconectar os poemas do eixo ficcional não chegou a incomodar o autor. Carpinejar aprecia mudanças. "Muitas vezes, recuar é avançar", teoriza. "Refiz versos, mostrando que um poema nunca está pronto mesmo depois de publicado. É sempre inacabado."


INFÂNCIA X VELHICE



O convite da editora coincidiu com o desejo de rever o percurso. É numa caixa de sapatos - onde um relógio velho, fotografias, cartas e moedas antigas nos visitam e nos impedem de esquecer - que Fabrício reúne seus poemas conforme uma particular escala de intensidade emotiva. No fundo desse pequeno santuário de lembranças, encontram-se até as pedrinhas que completaram na infância um jogo de cinco marias, título do próximo livro.


Cinco Marias é um novo capítulo a partir de Biografia de uma árvore. A obra traz a história da família de dr. Ossian, médico que julgou louco o personagem central das histórias. Nesse livro, cinco mulheres (a mãe e suas quatro filhas) roubam a cena e revezam suas vozes. "Não entrego quem é que está falando, o leitor descobrirá pela atmosfera, pelo temperamento", adianta Fabrício. Como o jogo cinco Marias, as pedras/vozes vão trocando de lugar, até que todas se reúnem no final.


Dos tempos de criança, Fabrício sempre colhe experiências guardadas num reservatório de miudezas e de brincadeiras antigas. Terceiro de quatro filhos, enfrentou a separação de Nejar e Carpi conversando com as roupas no armário do pai. Período sofrido exposto em Um terno de pássaros ao sul.



No poema Os viventes, o pai-poeta vira personagem para a pergunta: "O que procuravas em minhas roupas, o instinto de me sobreviver?" Em um dos fragmentos do segundo livro, Carpinejar diz: "Fiz fretes de obras na estante: mudava os títulos de endereços em tua biblioteca e rastreavas, ensandecido, aquele morto encadernado que ressuscitou quando havias enterrado a leitura, aquele coração insistente, deixando atrás uma cova aberta na coleção".


"A infância nunca está encerrada e a velhice é uma outra infância, em que o excesso de imaginar é substituído pelo excesso de memória", afirma o poeta. Em Terceira sede, o narrador, com 72 anos em 2045, faz o inventário de uma vida de solidão. "Conforto-me em ser apenas homem/ Envelheci, tenho muita infância pela frente".


O ano de 2002 tornou-se especial no calendário do poeta, que concluiu mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com a dissertação A teologia do traste na poesia de Manoel de Barros em contraposição à psicologia da composição de João Cabral, e lançou o festejado Biografia de uma árvore, elo importante na cadeia iniciada em As solas do sol.



Biografia de uma árvoreconquistou, neste ano, o Prêmio Nacional Olavo Bilac de melhor livro de poesia de 2002, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Nele, o protagonista clama: "Não me perdoes, Deus/ Não me esqueças/ O esquecimento jamais devolve seus reféns. // A claridade não se repete/ A vida estala uma única vez."


São versos escritos com caneta, mas escavados com pá até formar a estranha melodia que Fabrício Carpinejar busca em todas as suas obras. Trabalho de um agricultor de violinos.

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