segunda-feira, 26 de janeiro de 2004

DEPOIS

Gravura de Joan Miró

Da série Minha infância não atravessa a rua sozinha


Quando criança, a eternidade era deixar acesa a luz no corredor enquanto se dormia. A paisagem mais banal se contorcia e se assentava. Nas escadas e casas antigas, se havia uma inscrição em pedra, urgia tocar, desvendar a porosidade das letras. Raspar a poeira da laranja. O sol envelhecendo. Ficar assustado com o pólen dos tapetes estendidos no varal, como fantasmas se agigantando do sono. Os beijos não eram tão apressados. As roupas não causavam inveja. As janelas faziam barulhos para abrir. Eu acreditava no que via na tevê, no jornal, no final de semana. Eu acreditava no amor quando minha vizinha colocava batom. Escavava o tempo, o pátio, o trinco, os vãos das paredes, os sapatos, os cintos, os armários. Cada brinquedo era uma ciência. Um gafanhoto no vidro e um furo na tampa era uma ciência. Havia algo para procurar no fundo de cada coisa. Algo para me entreter fora de mim. Depois comecei a morrer no escuro, depois comecei a me esquecer no escuro, depois o tempo começou a me escavar, depois escureci, depois penso tanto em mim que não me procuro, depois apenas espero o depois.

Nenhum comentário:

Postar um comentário