terça-feira, 30 de dezembro de 2003

2004

2004

Fabrício Carpinejar


Que eu possa devolver os livros que tomei emprestado. Que eu não peça a devolução dos livros que emprestei. Que eu tenha dúvidas, melhor do que certezas e falir com elas. Que a fé não seja o cartão furado da lotérica. Que eu faça o medo amadurecer em esperança. Que meus amigos desempregados deixem de comprar o jornal pelos classificados. Que a única corrente que use seja a do balanço para embalar meu filho. Que a poesia não fique na estante mais escondida das livrarias. Que São Leopoldo perca seu complexo de cidade-dormitório. Que eu ligue mais para meus irmãos para falar menos dos outros. Que minha mulher possa entender o que nem preciso falar. Que eu cumprimente meu vizinho sem temer a resposta. Que eu possa usar o terno azul pinho sol em alguma festa fantasia. Que eu faça fantasia mesmo acordado. Que minha letra aprenda a montar no cavalo das linhas. Que eu ande de bicicleta para enxergar a cidade diferente. Que eu cuide das plantas da mão alisando a chuva. Que eu não fique cobrando para me aliviar do trabalho. Que eu aprenda a guardar segredos sem jurar por Deus. Que eu tenha menos vaidade e mais realidade. Que eu invente mentiras convincentes para deixar as verdades com ciúmes. Que eu perca o pavor de supermercado. Que eu não pense na morte antes de dormir. Que eu volte a rezar sem querer. Que eu possa nadar na neblina. Que eu não tenha receio de ser ridículo. Que eu faça amigos falando do tempo. Que eu pare de fumar. Que os ex-fumantes parem com os sermões. Que eu escreva nos livros o que os livros me escrevem. Que eu possa brincar mais sem contar as horas. Que eu use somente as palavras que tenham sentido. Que eu prove a comida nas panelas. Que eu aceite os conselhos da loucura. Que transforme a raiva em vontade de me entender. Que o trânsito não seja sauna. Que eu passe a xingar o pai do juiz no estádio. Que meu time não me engane na última hora. Que eu possa assistir shows com meus filhos na garupa. Que eu atinja o segundo andar das ameixeiras. Que eu abra o capô apenas do piano. Que eu não precise fechar as janelas na sinaleira. Que eu visite mais minha sogra. Que o domingo não termine com o futebol. Que eu deixe crescer o musgo dos olhos. Que eu possa caminhar a esmo em minha respiração. Que eu me levante de bom humor. Que eu leve a cama até o café. Que o inverno seja uma garrafa de vinho e vaga-lumes dentro. Que o governo seja suficientemente competente para não ser pivô das conversas. Que eu faça aniversário de criança nos meus 32 anos. Que o verão seja se afogar em dunas. Que eu não pergunte a uma mulher sua idade ou se está grávida. Que eu repare nas unhas pintadas e nos cabelos mudados de minha esposa um dia depois, melhorando minha média. Que eu me lembre dos nomes dos filmes que assisti. Que eu não cante em público. Que a eternidade possa sentir saudades da vida.

OBSERVATÓRIO DE IMPRENSA

Deu no Observatório da Imprensa, coluna Armazém Digital, Melhores de 2003, 30/12/03:


BALANÇO 2003

Boas lembranças e duas mancadas


Deonísio da Silva


Primeiramente, realcemos alguns dos muitos livros que fazem por merecer a atenção dos leitores. Por título, autor e editora seguem algumas boas lembranças do ano que finda.


1. A margem imóvel do Rio, de Luiz Antonio de Assis Brasil, LPM - Um romance que mostra o Brasil meridional do século 19, visto por um alto funcionário da Corte que sai do Rio em busca de misterioso personagem. Luiz Antonio de Assis Brasil deixa evidentes as marcas que o consagraram como um de nossos melhores romancistas. A margem imóvel do Rio evidencia o encanto da leitura que se faz por prazer.


2. As ilusões armadas, de Elio Gaspari, especialmente o volume A ditadura derrotada, Companhia das Letras - Você pensava que o governo Geisel tinha sido de distensão lenta, segura e gradual, como apregoaram sempre? Não. O Sacerdote (Geisel) e o Feiticeiro (Golbery), dois poderosos com quepes e fardas estreladas, têm seus perfis iluminados no meio das trevas do período por um jornalista que pesquisou seriamente para nos revelar outros lados da escuridão.


3. O amante brasileiro, de Betty Milan, A Girafa - Num romance edificado sobre troca de mensagens eletrônicas, o amor, o sexo e a solidão, vistos de Paris e de São Paulo. A autora tem obsessão por definir o novo lugar do amor e da amizade nos tempos modernos. Mas jamais foi tão feliz em tal persistência como neste livro repleto de maravilhosas declarações de duplas que se amam de verdade.


4. Concerto para paixão e desatino, de Moacir Japiassu, W11 Editores - Em A Santa do Cabaré, o autor já se mostrara um craque, apresentando-nos Ladislau, personagem fascinante, que tudo desarruma, principalmente os conceitos do Bem e do Mal. E neste segundo romance, o contexto e o pretexto para um romance histórico que inova o gênero são a Revolução de 1930 e seus vultos inesquecíveis. Sua linguagem: "um aluvião poético na aridez", como definiu Rogério Pereira, de Rascunho [jornal dedicado a autores e livros, editado em Curitiba e encartado no Jornal do Estado, na primeira sexta-feira do mês; ]. Lembro que Rascunho passa a limpo autores e livros com ousadia e sinceridade raríssimas nas páginas literárias de nossa imprensa.


5. Gosto de uva, de Frei Betto, Garamond - Um livro de ensaios marcado por suave erotismo e grande clarividência, revelando as utopias do Richelieu do presidente Lula. O autor não tem autoridade e nem vestes cardinalícias, é um simples frade dominicano que, por coerência, pagou caro por suas idéias, passando larga temporada no temível presídio Carandiru, já desativado.


Boas lembranças


Em segundo lugar, realcemos autores que se destacaram por livros, artigos, entrevistas, conferências. Foram muitos, mas à semelhança do item anterior, lembremos alguns, como quem sublinha nomes com lápis vermelho para não perder de vista tais referências. Alberto da Costa e Silva, poeta de reconhecidos méritos e o ensaísta competente de A manilha e o libambo, marcou presença com sua dicção segura.


Affonso Romano de Sant'Anna, poeta, cronista e ensaísta admirável. Nunca saberemos o gênero que ele mais aprecia, mas o leitor sempre encontra em seus textos, seja qual for o escolhido, um autor que tem o que dizer e sabe como fazê-lo. No ano de 2003, ele esbanjou talento, competência, coragem e invenção em livros e na imprensa, submetendo ícones como Ezra Pound e Marcel Duchamps a um olhar armado desconcertante pelos mirantes em que se pôs a contemplar a modernidade com grande lucidez.


No time, impossível esquecer o escritor e professor Menalton Braff, gaúcho transplantado para o interior de São Paulo, que segue um caminho admirável com livros - bem conhecidos - e crônicas - ainda sem gozar da atenção que merecem. É um autor que escreve apoiado em conceitos muito claros do que vem a ser o que chamamos Brasil.


Sempre se fez boa poesia no Brasil meridional. E este ano Fabrício Carpinejar, pagando o alto preço de ter pai e mãe poetas, voltou com os versos deslumbrantes que contribuíram para a consolidação de seu inegável prestígio: é um de nossos melhores poetas. Cometeu livros e artigos imperdíveis. Quem ainda não tem Caixa de sapatos, por exemplo, precisa providenciar rapidinho.


Antonio Torres, o memorável autor de tantos romances, vários deles publicados também em outros países, voltou com O nobre seqüestrador, apoiado em fato histórico rico por sua complexidade e desdobramentos: o seqüestro do Rio de Janeiro por um corsário francês.


Dalton Trevisan sempre no batente de narrativas curtas cada vez mais abreviadas, de que é exemplo o imperdível Capitu sou eu.


Nomes como Plínio Cabral, Anna Maria Martins e Domingos Pellegrini, na ficção. Neide Archanjo, Mário Chamie e Alberto Cunha Melo, na poesia. Os prêmios Portugal Telecom, Talentos da Maturidade e Jorge Amado de Literatura e Arte foram grandes acontecimentos e reconhecimentos literários. Enfim, há um caudal volumoso de boas lembranças para memorar e comemorar 2003.


O governador disse, os jornalistas não entenderam


Duas mancadas literárias do ano. Primeiro, a eleição de Marco Maciel para a Academia Brasileira de Letras. Que autor é esse, qual sua obra? Se ele fosse eleito para alguma agremiação política que destacasse seu desempenho como governador de Pernambuco, senador, ministro da Educação, vice-presidente da República, tudo bem! Mas como autor eleito para a ABL!


Em segundo lugar, a gafe dos repórteres que entrevistavam Geraldo Alckmin e quando - é muito raro um político referir leituras - ele disse que "para homenagear o poeta", a escolha do candidato de seu partido a prefeito de São Paulo seria "em março ao findar das chuvas e logo à entrada do outono" - eles disseram que o governador tinha evocado Águas de março, de Tom Jobim (Folha de S.Paulo, pág. A 9, 23/12/03). Evidentemente a referência era Olavo Bilac, com os versos iniciais de O caçador de esmeraldas, presente em muitas antologias escolares:


"Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada/ do outono..."


Já que o nome de Tom Jobim é sempre uma boa lembrança, mesmo nos equívocos, foi ele quem, comentando as dificuldades de se entender nossa pátria, disse que "o Brasil não é para principiantes".

POLÍTICA E LITERATURA



Ao contrário de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, autor de Invenção de Orfeu, se candidatou e se elegeu. Foi vereador do Distrito Federal pela União Democrática Nacional em 1947, permanecendo na Câmara até 1950. Bandeira não conseguiu mandato na política, mas venceu a corrida por uma vaga na Academia Brasileira de Letras em 1940. Jorge de Lima, por sua vez, amargou derrota na ABL em 1936. A imortalidade deles chegou de outra forma.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

MANUEL

Manuel Bandeira, poeta,
e Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho, candidato a deputado federal


Manuel Bandeira nasceu para a discrição, a delícia das coisas simples. Contra a vaidade e os papagaios de pirata gritando ao fundo das fotos, o autor de Libertinagem ofereceu uma amostra de humildade em seu tempo. Apesar da fama de grande poeta, nunca misturou política com versos. Chegou a se candidatar a deputado federal pelo Rio de Janeiro. Poucos ficaram sabendo, nem sequer seus alunos da Literatura Hispano-Americana, da Faculdade de Letras. Discreto, apresentava-se como Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho, professor, dificultando qualquer ligação literária. A história é contada em O pardal na janela (ABL, 2002) pelo poeta e historiador Alberto da Costa e Silva, um dos cem eleitores que não elegeram o poeta, mas não esquecem do legado.

DE MÃO TROCADA

A mão com que escrevo trai a calada que ampara o caderno. A direita dirige; a esquerda diz a direção do sangue. A direita bate o tambor do cigarro; a esquerda cuida das sobras. A direita fecha a porta; a esquerda abre as janelas. A direita é vinho branco; a esquerda, vinho tinto. A direita é a primeira a acordar; a esquerda, a primeira a dormir. A direita abandona a casa; a esquerda faz horta nos calos da mala. A direita é vista em excesso; a esquerda lava as costas da destra, esfrega o piso das unhas. A mão direita mata; a esquerda confessa o crime. A direita promete; a esquerda cumpre o casamento. A direita entoa fardos do fardo vivido pela esquerda. A mão direita passa a limpo os bilhetes e telefones anotados na esquerda. A direita seduz; a esquerda resvala na despedida. A direita aparta estranhos; a esquerda convida amigos. A direita ofende; a esquerda elogia. A direita sofre de insônia; a esquerda acalma o pesadelo. A direita corta os pulsos da esquerda, mas só a direita pode fechar a gaiola das veias.

ZERO-HORA - DESTAQUES DO ANO

Deu no Jornal Zero Hora, Segundo Caderno, matéria sobre os destaques do ano, Porto Alegre, 29/12/03, Edição nº 14008


Literatura

O ano chega ao fim, a literatura se renova

Em 2003, o mercado editorial viu recordes serem batidos, novos autores se afirmarem, veteranos se consagrarem e Paulo Coelho ser best-seller no mundo

CÍNTIA MOSCOVICH



O ano que se encerra foi pródigo para o mercado livreiro. Embora alguns editores se queixem de que as vendas tenham caído, nunca, como em 2003, tantos recordes foram quebrados. A editora Rocco ultrapassou duas vezes sua própria marca: primeiro com a tiragem de 200 mil volumes para o romance Onze Minutos, de Paulo Coelho, e depois com Harry Potter e a Ordem da Fênix, quinto livro da série da escocesa J. K. Rowling, que chegou à casa dos 300 mil exemplares - recorde nacional absoluto. Paulo Coelho também ultrapassou suas próprias marcas: segundo a revista inglesa Publishing Trends, o mago é o autor mais vendido de 2003 em todo o mundo.


Este também foi ano de acontecimentos significativos para as letras gaúchas. Além de um novo prêmio para a literatura, também se realizou a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, que, em agosto, chegou à sua 10ª edição, enquanto que a 49ª Feira do Livro de Porto Alegre foi a grande atração de novembro. Confira alguns eventos marcantes de 2003.



Jovem depois de velho




Nem bem completou 30 anos, o poeta Fabrício Carpinejar já se tornou um clássico. Filho de dois poetas, Maria Carpi e Carlos Nejar - coincidentemente ambos com livros novos neste ano - Carpinejar tornou-se nome de biblioteca em São Leopoldo e batiza um concurso de poesia. Também foi o ano em que lançou uma antologia - coisa que costumeiramente é reservada a autores mais vetustos. Lançado em setembro pela Companhia das Letras, uma das maiores editoras nacionais, Caixa de Sapatos reúne poemas de seus quatro livros publicados nos últimos cinco anos. Selecionando material de As Solas do Sol (1998), Um Terno de Pássaros ao Sul (2000), Terceira Sede (2001) e Biografia de uma Árvore (2002), Caixa de Sapatos fundou definitivamente o lugar do poeta na literatura nacional.


Leia a matéria completa com os outros destaques.

sábado, 27 de dezembro de 2003

IMPOSTOR

Não tiro a barba há sete anos. Não uso óculos de propósito. Só os cabelos conspiraram e voaram antes do disfarce. Não toco clarinete e, se recebesse convite, iria ao Oscar. Faço o possível para que ninguém me reconheça no Woody Allen, apelido da minha adolescência.

MINHA INFÂNCIA NÃO ATRAVESSA A RUA SOZINHA

Da série Minha infância não atravessa a rua sozinha:


Tinha que fazer um trabalho sobre Princesa Isabel para 3ª série. Fui pesquisar na Barsa. Achei rapidinho o nome dela. No centro das folhas, vi uma Isabel que não era princesa. Um encarte colorido com uma loira de quatro. A mulher me olhava por debaixo das pernas. A vida arregalada. A mulher ainda acenava, sorridente. Ao virar a folha, sem tempo para coçar, vejo meu irmão chegando rápido e retirando a revista de minhas mãos. "Isso não é teu (pausa). Nem meu (ele pensou melhor). Não vais entender agora". Com voracidade, eu me dediquei religiosamente à biblioteca naquela semana. Explorei um por um dos verbetes. Revirei todos os volumes, mas nenhum fazia mais referência a minha abolição.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2003

QUERO-QUERO

Mariana, minha filhota, está de aniversário. Dez anos. Ela se entrega em risos nas fotos. É uma doação inteira. Ela encabula a máquina fotográfica com tamanha alegria. Quando ela tinha três anos, passamos por um dos perigos de sua infância. Passeávamos no Grêmio Náutico União, no bairro Petrópolis (POA). Havíamos dado comida aos peixes, como todas as manhãs. Atalhamos o caminho pela grama alta. Uma legião de quero-quero nos estranhou e pensei que fosse apenas mau humor passageiro. O quero-quero tem uma postura marcial, metálica, com penacho de milico. Continuei avançando, de mãos dadas com os passos miúdos dela. Ao lado de uma criança, a gente troca nossos passos pela metade deles. Dia de ventaneira, o vento podia trançar a si mesmo. Como balanços se enrolando em voltas e giros. Mariana observava o céu, indiferente aos gritos histéricos dos pássaros. Em um movimento inesperado, três quero-queros começaram a sobrevoar nossas cabeças. Um linchamento de patas. Tomei a Mariana no colo e a protegi com meu corpo. Um dos bichanos puxou com fúria minha folgada bermuda, que ficou como pano abandonado no local. Corri de cuecas no descampado, com as aves atazanando os olhos, roendo em rasantes os fios dos cabelos. Voltei para a casa com as roupas mínimas. Atravessei oito quadras assim. Mariana, percebendo meu nervosismo, apenas tocava no meu rosto e imitava minhas palavras depois de algum pesadelo: - Passou, passou, passou.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

VAGA-LUMES

A Ana disse que faz tempo que não vê vaga-lumes. O tempo de piscar entre entre um livro e outro, o que é uma eternidade. Não é fácil encontrar a floração da grama como antes. Na sua infância, a Ana caçava vaga-lumes com uma pequena rede. Ela e os irmãos colocavam o pequeno bicho em um vidro de conserva, com a tampa decorada de flores de pano. Ele ficava alumiando, fogo saltando de um lado para outro no frasco. Era o abajur que eles não tinham. Luz respirando. Sol da noite.

ESCAPULÁRIO

Menino, eu não duvidava do Natal. Era o único dia em que as famílias se encontravam. Na casa amarela de esquina dos avós paternos. Juntavam todas as mesas existentes nos cômodos e uma toalha de mesa branca uniformizava os troncos desparelhos. Até criado-mudo entrava na parada. Lembro que eu não podia beber nada até comer tudo, o que nunca acontecia. Eu transportava, discretamente, metade da comida ao prato de meu irmão. Era uma operação arriscada, meu guindaste não podia ser visto. Dezenas de tios mexiam nos meus cabelos e não decorei o nome de qualquer um deles. Eu cheguei a pensar que todos em minha cidade eram meus tios. Meu pai e minha mãe exageraram em irmãos. Minhas primas não me davam bola. Eu jogava bola no pátio com os primos. Até jogar a bola no vizinho e acabar o jogo. Saíamos de madrugada para o Papai Noel deixar os presentes. Eu levitava, juro que é uma sensação entre nascer e morrer, a sensação de que seria decorado pela vida, que havia vida além da minha casa. Ao chegar, correndo, alvoroço de cabeças espiando a porta, multiplicando os braços, eu ganhava a bola que havíamos perdido no vizinho e a partida continuava. Eu aparecia como um salvador para a turma dos guris. Ao longo dos anos, a casa foi aumentando de tamanho, porque os familiares não vinham com a mesma regularidade. Não havia arrecadação das mesas. O Natal foi sumindo. Os casacos rarearam nos cabides da entrada. Os adultos começaram a brigar, acompanhei discussões ridículas e tapas pelo pretexto de trocar o canal de tevê. Os avós morreram, meus pais se separaram. Aprendi a manter a aparência, não demonstrar que participava da confusão. O escapulário enredou sua corda. Conservar a harmonia era mais árduo do que comer tudo sem beber nada. Vontade de chorar enquanto se ia. O Natal voltou a existir quando me tornei pai. Passei a assistir o som surgindo de dentro da boca da minha criança com três dentes, como se faz ao espreitar as cordas de um violino. A língua encontrando seu pedal. Voltei a ter fé. Levito, mas agora sou muito mais atento. Quando surgir o capítulo da discórdia, quero tomar uma outra atitude. Talvez levar meus filhos e minha mulher ao telhado para mostrar o mundo de cima.

REFLUXO DO OLHAR

Berlinda: Amilcar Bettega Barbosa ganhou o Prêmio Açorianos 2003, categoria conto, com "Deixe o quarto como está" (Cia das Letras, 2002). Merecido.


REFLUXO DO OLHAR

"Deixe o quarto como está" apresenta um escritor maduro, de estilo próprio.


Fabrício Carpinejar


É moeda corrente definir o autor justamente por aquilo que ele não é. Cobrar sua produção a partir de referenciais autorizados e efígies avalizadas pela história literária. O novo livro de Amilcar Bettega Barbosa, escritor gaúcho, 38 anos, corre o risco de ser falsamente interpretado. "Deixe o quarto como está" (Companhia das Letras, 124 págs.) pode ser visto como parente do realismo fantástico de José J. Veiga, os contos "Crocodilo I e II" taxados superficialmente de kafkianos, Julio Cortázar apareceria em "O rosto", no qual um homem persegue a si mesmo dentro de sua casa, Albert Camus talvez fosse usado para "A Cura", que lembraria a catástrofe coletiva que assola o povoado do romance "A Peste". A obra deixaria de ser de Amilcar para se constituir numa antologia de clássicos. O que não é coerente. O importante é encontrar nela o que a separa dos escritores consagrados. Tudo bem que se pretenda decodificar a genealogia, mas não se deve reduzi-la à própria cultura e ao tamanho da bagagem. Antes da celebração de antepassados, o grande escritor se faz pelas ausências que cria, até que se tornem ausências necessárias no futuro.


"Deixe o quarto como está" tem como subtítulo "Estudos para a composição do cansaço". O nome é emblemático, implica em aceitação do caos, de uma realidade bruta, sem filtros e hierarquia. Amilcar apresenta uma singularidade no cenário do conto brasileiro: transformou a objetividade em alta subjetividade. Não interfere, apenas coleciona contrastes. Do adensamento das observações, verifica-se a expansão simbólica. Monta uma coreografia sonâmbula, reproduzindo o "barulho da cidade dormindo". Ocorre a predominância de ambientes noturnos, espaços abertos mas claustrofóbicos, aguçados pela vigilância e mal-estar dos habitantes.


Seus personagens adoecem de um excesso de lugar, um excesso de presente, talvez mostrando que não há maior doença hoje em dia do que não conseguir se distrair, de aceitar passivamente o bombardeio de informações e solicitações, de querer acompanhar todos os canais ao mesmo tempo. Os protagonistas não tomam decisões, são atentos em demasia para formular algum juízo ou sentença. A inércia decorre da riqueza de possibilidades, que intimida a escolha. Presos demais aos detalhes, ao desperdício da vida, não reparam no conjunto. "A casa jamais se entrega totalmente", diz uma das narrativas. Desconfiam da esperança ou da memória ("não há nada mais inquietante do que não poder confiar nas lembranças"). Não conseguem enxergar a totalidade do cotidiano, porque se refletem no que vêem. São narcisos subtraídos do espelho, solitários, absortos, na maioria das vezes perseguindo ou fugindo das verdades. Estão decifrando uma individualidade que não compreendem e nem vão compreender. O "Hereditário" sintetiza as permanentes dúvidas. Filho herda uma esfera, parecida com uma geléia, que se torna extensão de seu corpo e o isola da convivência.


A naturalidade com que o escritor conta as histórias termina por apagar o estranho e o sobrenatural. Nada mais real e assombroso do que seres entranhados na rotina. Um comerciante tenta fechar a loja em "O exílio", porém não consegue sair de sua cidade. O trem que embarca nunca atravessa as fronteiras. Assim como pivetes buscam assaltar uma casa em "Auto-retrato", apanham do morador, são expulsos e o cenário em instantes volta a absoluta tranqüilidade inicial. As ações desistem do movimento, os homens de seus projetos. "Enlouqueceria dentro da mais pura normalidade", avisa o personagem de "O Crocodilo I". Identifica-se um terrorismo psicológico, onde Amilcar atua como perito dos desvios, fomentando as alucinações de olhos abertos. Privilegia a sonoplastia, o ritmo, mais do que a imagem. De uma linhagem sonora, não visual, demonstra talento em explorar o suspense pelos ruídos, optando pela caracterização mediante a respiração, a tosse, o alarido e a música. "Fico sem saber se a sua voz está de fato distante ou se é ela que está cantando a própria distância."


Predomina a estabilidade narrativa inclusive no estopim da violência, exemplificada de modo corriqueiro em "Insistência". Um jovem entra na briga pelo domínio de um espaço nunca sabendo os motivos de estar ali. Segue os comandos da tribo e mesmo se negando a participar arruma sempre encrenca pela frente. Independente do lado e da turma que aderir, precisará superar a resistência. A morte também não traz alternância de quadro emocional, seja em "A cura", em que os pacientes terminais são cobaias em nome de uma pesquisa salvadora, ou em "Aprendizado", que o rapaz assiste à chuva negra de uma cafeteira pouco interessado no obituário da mãe.


O livro traz um conjunto homogêneo, compacto e que se sustenta da primeira à última página. Os contos obedecem um movimento inverso do tradicional: partem do ápice em direção ao esvaziamento. Os primeiros parágrafos dos 14 textos antecipam o desfecho e o clímax. Com rara habilidade, mantém a surpresa na falta de surpresa, a tensão na monotonia. Autor de Vôo do Trapezista" (WS Editor, 1995), premiado com Açorianos e com a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional, Amilcar não merece ser reboque dos figurões ou receber os adereços de "jovem" e " promissor". Ele já aconteceu faz tempo. Basta escutar o que tem a dizer.


"Não sei quanto tempo disporei dessa sala. Assim como alguns cômodos brotam da noite para o dia, outros desaparecem sem explicação nenhuma, numa espécie de balanceamento que a casa faz, como que possuída por um rigor matemático. Já pensei em encarcerar o rosto em uma das peças condenadas ao desaparecimento. Mas como descobrir quais são essas peças? Tenho intuição, mas não basta."

Fragmento do conto O rosto do livro "Deixe o quarto como está", de Amilcar Bettega Barbosa.

terça-feira, 23 de dezembro de 2003

OUTRA IDADE

Poema de Fabrício Carpinejar

Desenho de Mariana


Entendo a metade das frases

e adivinho o resto.

O homem nunca é pedra.

O homem nunca é perda.

Era um Natal chuvoso.

Esfregava o vidro

como quem termina uma carta.

O rio encostava na parede

para se ouvir.

A memória guarda o essencial

e elimina as datas.

A memória não decora sua rua.

Arrumamos a mesa.

Colocamos velas e nozes.

Provocamos o fogo

como quem amola facas.

Cantamos a noite inteira.

Se faço silêncio hoje,

ainda escuto o trincar

dos copos, dos dentes,

a gritaria dispersa,

o abraço sem fechar o pouso, o pouco.

Improvisava o que eu seria.

Minhas roupas viveram demais

para voltar ao meu corpo.



(Revista Vida Simples, dezembro de 2003)

AUTO-RETRATO



Auto-retrato

(um desenho inacabado de um autor inacabado)


- Poesia é fruta roubada do pé da linguagem.


- Mais se faz um poema rejeitando as palavras erradas do que escolhendo as certas.


- Cassiano Ricardo comparava a poesia com o desenho animado. O que é inverossímil fora do livro é perfeitamente adequado dentro. Fusão dos contrários, transfusão da natureza-morta para a viva, casamento entre dois vocábulos viúvos. Os poemas se encaixam pela fluxo de quadros e cenas, por uma lógica emotiva, além do alcance da objetividade. Uma imagem sem sentido imediato pode se abrir na companhia de outra. A sucessão é a chave da leitura.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

OBRIGADO

O blog atingiu a marca de 10 mil visitantes em cinco meses, desde seu início em agosto. O que começou como brincadeira permanece como brincadeira. Sempre nos enganamos a respeito das crianças e com que restou de nosso passado. No Natal, procuramos dar brinquedos sofisticados, caros e dispendiosos. Mas a geringonça colorida que custou parte significativa do salário vai prender a atenção da criança durante o dia da estréia e nunca mais. Na verdade, elas vão se divertir com o ínfimo, algo ridículo, uma folha, um pedaço de madeira, uma gaiola torta, um carretel, um prato quebrado, um disco riscado. Inventam a intimidade nas pequenas coisas abandonadas, numa canção, numa conversa de limo, num dicionário de rio, num soluço de ervas. As palavras são brinquedos de amar. Encontro as palavras no ermo, lustro e faço delas um tambor de chuva. Erro a esmo para nunca ser o mesmo.

GARRANCHO...



Garrancho: Quem tem letra ilegível passa a complicar todo o resto.


Pequenas causas: Nunca chego a um trato com quem deixei de ser. Os outros que fui pedem sempre indenização para falir meu futuro.



Abandono de carro: Desisto de me concluir. Não será agora nem em 2004.


Otimismo: Ao receber excremento de aves na roupa branca, chamo a sujeira de sorte.


Faça barulho: Ninguém nasce para não perturbar.

domingo, 21 de dezembro de 2003

DE PERNAMBUCO

DE PERNAMBUCO:


"A luz é quem chega

falando demais"


Deborah Brennand

Maçãs negras (Edições Bagaço, 2001)

DEUS E O FUTEBOL

Meu grande amigo era o Iraji. Ele chegava em casa às 11h30 e ficava esperando no muro até as 13h, horário da aula. Não apertava a campainha, como um pintassilgo recolhendo cisco. Ele também não havia almoçado, descobri isso na terceira visita. Passamos a convidar a comer com a gente. Usava sempre a mesma roupa. Vinha não sei da onde. Não sei da onde parecia longe. Ele passava por debaixo da roleta. Era miúdo, moreno, cabelos encaracolados e um talento para o futebol fora do normal. Armou um dos principais lances do colégio: um chapéu no goleiro alemão da 8ª série quando estava na 4ª. A bola subiu três andares para escorrer macia no elevador do peito. O edifício mais alto do bairro tinha três andares. O gol o consagrou entre os pequenos. Não era de briga, mas do imã da bola. O melhor jogador é aquele que não pensa, mas faz a bola pensar. Um olheiro do Internacional assistiu suas jogadas na escola. A escola tinha o muro pichado com nomes feios. A primeira vez que li 'pau no cu' foi lá. Não entendi e falei para o meu pai. Meu pai me xingou violento. Iraji foi para o Inter. Largou a escola pelo Beira-Rio. Resolveu a vida. Eu carecia de sua amizade. Suportava a falta ao imaginá-lo feliz, com almoço e descendo pela porta da frente. Um dia, já no 2º Grau, o encontrei e ele me disse que uma lesão séria o proibiu de continuar jogando. Seus olhos mancavam ao subir cada palavra. Não sabia fazer outra coisa. Deus não gosta de futebol.