quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

ESCAPULÁRIO

Menino, eu não duvidava do Natal. Era o único dia em que as famílias se encontravam. Na casa amarela de esquina dos avós paternos. Juntavam todas as mesas existentes nos cômodos e uma toalha de mesa branca uniformizava os troncos desparelhos. Até criado-mudo entrava na parada. Lembro que eu não podia beber nada até comer tudo, o que nunca acontecia. Eu transportava, discretamente, metade da comida ao prato de meu irmão. Era uma operação arriscada, meu guindaste não podia ser visto. Dezenas de tios mexiam nos meus cabelos e não decorei o nome de qualquer um deles. Eu cheguei a pensar que todos em minha cidade eram meus tios. Meu pai e minha mãe exageraram em irmãos. Minhas primas não me davam bola. Eu jogava bola no pátio com os primos. Até jogar a bola no vizinho e acabar o jogo. Saíamos de madrugada para o Papai Noel deixar os presentes. Eu levitava, juro que é uma sensação entre nascer e morrer, a sensação de que seria decorado pela vida, que havia vida além da minha casa. Ao chegar, correndo, alvoroço de cabeças espiando a porta, multiplicando os braços, eu ganhava a bola que havíamos perdido no vizinho e a partida continuava. Eu aparecia como um salvador para a turma dos guris. Ao longo dos anos, a casa foi aumentando de tamanho, porque os familiares não vinham com a mesma regularidade. Não havia arrecadação das mesas. O Natal foi sumindo. Os casacos rarearam nos cabides da entrada. Os adultos começaram a brigar, acompanhei discussões ridículas e tapas pelo pretexto de trocar o canal de tevê. Os avós morreram, meus pais se separaram. Aprendi a manter a aparência, não demonstrar que participava da confusão. O escapulário enredou sua corda. Conservar a harmonia era mais árduo do que comer tudo sem beber nada. Vontade de chorar enquanto se ia. O Natal voltou a existir quando me tornei pai. Passei a assistir o som surgindo de dentro da boca da minha criança com três dentes, como se faz ao espreitar as cordas de um violino. A língua encontrando seu pedal. Voltei a ter fé. Levito, mas agora sou muito mais atento. Quando surgir o capítulo da discórdia, quero tomar uma outra atitude. Talvez levar meus filhos e minha mulher ao telhado para mostrar o mundo de cima.

Nenhum comentário:

Postar um comentário