terça-feira, 30 de dezembro de 2003

2004

2004

Fabrício Carpinejar


Que eu possa devolver os livros que tomei emprestado. Que eu não peça a devolução dos livros que emprestei. Que eu tenha dúvidas, melhor do que certezas e falir com elas. Que a fé não seja o cartão furado da lotérica. Que eu faça o medo amadurecer em esperança. Que meus amigos desempregados deixem de comprar o jornal pelos classificados. Que a única corrente que use seja a do balanço para embalar meu filho. Que a poesia não fique na estante mais escondida das livrarias. Que São Leopoldo perca seu complexo de cidade-dormitório. Que eu ligue mais para meus irmãos para falar menos dos outros. Que minha mulher possa entender o que nem preciso falar. Que eu cumprimente meu vizinho sem temer a resposta. Que eu possa usar o terno azul pinho sol em alguma festa fantasia. Que eu faça fantasia mesmo acordado. Que minha letra aprenda a montar no cavalo das linhas. Que eu ande de bicicleta para enxergar a cidade diferente. Que eu cuide das plantas da mão alisando a chuva. Que eu não fique cobrando para me aliviar do trabalho. Que eu aprenda a guardar segredos sem jurar por Deus. Que eu tenha menos vaidade e mais realidade. Que eu invente mentiras convincentes para deixar as verdades com ciúmes. Que eu perca o pavor de supermercado. Que eu não pense na morte antes de dormir. Que eu volte a rezar sem querer. Que eu possa nadar na neblina. Que eu não tenha receio de ser ridículo. Que eu faça amigos falando do tempo. Que eu pare de fumar. Que os ex-fumantes parem com os sermões. Que eu escreva nos livros o que os livros me escrevem. Que eu possa brincar mais sem contar as horas. Que eu use somente as palavras que tenham sentido. Que eu prove a comida nas panelas. Que eu aceite os conselhos da loucura. Que transforme a raiva em vontade de me entender. Que o trânsito não seja sauna. Que eu passe a xingar o pai do juiz no estádio. Que meu time não me engane na última hora. Que eu possa assistir shows com meus filhos na garupa. Que eu atinja o segundo andar das ameixeiras. Que eu abra o capô apenas do piano. Que eu não precise fechar as janelas na sinaleira. Que eu visite mais minha sogra. Que o domingo não termine com o futebol. Que eu deixe crescer o musgo dos olhos. Que eu possa caminhar a esmo em minha respiração. Que eu me levante de bom humor. Que eu leve a cama até o café. Que o inverno seja uma garrafa de vinho e vaga-lumes dentro. Que o governo seja suficientemente competente para não ser pivô das conversas. Que eu faça aniversário de criança nos meus 32 anos. Que o verão seja se afogar em dunas. Que eu não pergunte a uma mulher sua idade ou se está grávida. Que eu repare nas unhas pintadas e nos cabelos mudados de minha esposa um dia depois, melhorando minha média. Que eu me lembre dos nomes dos filmes que assisti. Que eu não cante em público. Que a eternidade possa sentir saudades da vida.

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