domingo, 21 de dezembro de 2003

DEUS E O FUTEBOL

Meu grande amigo era o Iraji. Ele chegava em casa às 11h30 e ficava esperando no muro até as 13h, horário da aula. Não apertava a campainha, como um pintassilgo recolhendo cisco. Ele também não havia almoçado, descobri isso na terceira visita. Passamos a convidar a comer com a gente. Usava sempre a mesma roupa. Vinha não sei da onde. Não sei da onde parecia longe. Ele passava por debaixo da roleta. Era miúdo, moreno, cabelos encaracolados e um talento para o futebol fora do normal. Armou um dos principais lances do colégio: um chapéu no goleiro alemão da 8ª série quando estava na 4ª. A bola subiu três andares para escorrer macia no elevador do peito. O edifício mais alto do bairro tinha três andares. O gol o consagrou entre os pequenos. Não era de briga, mas do imã da bola. O melhor jogador é aquele que não pensa, mas faz a bola pensar. Um olheiro do Internacional assistiu suas jogadas na escola. A escola tinha o muro pichado com nomes feios. A primeira vez que li 'pau no cu' foi lá. Não entendi e falei para o meu pai. Meu pai me xingou violento. Iraji foi para o Inter. Largou a escola pelo Beira-Rio. Resolveu a vida. Eu carecia de sua amizade. Suportava a falta ao imaginá-lo feliz, com almoço e descendo pela porta da frente. Um dia, já no 2º Grau, o encontrei e ele me disse que uma lesão séria o proibiu de continuar jogando. Seus olhos mancavam ao subir cada palavra. Não sabia fazer outra coisa. Deus não gosta de futebol.

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