sábado, 10 de janeiro de 2004

LUIS CARLOS, MEU PAI

Fabrício Carpinejar


Meu pai faz 65 anos neste domingo. Meu pai não é o Carlos Nejar que vocês conhecem. É outro nele. Meu pai é um homem e seus longos silêncios. Um homem que entrou no livro e cava para sair dele. Um homem que acredito, em alguma porção de seu dia, tenta não ser Carlos Nejar. Não aceita o que dizem dele ou o que diz de si. Em algum momento de seu dia, é ele e Deus se olhando como plumas e espuma, como lume e azeite, como quem toca um vento em pêlo, sem rédeas. É ele e seu passado aberto. Esse pai que luta contra si mesmo é o meu pai. Meu pai não é a literatura. Meu pai é sair da literatura. Quando pequeno, ele me convidava para ficar na varanda. Pegava seu livro de anotações e escrevia como um cego olhando para cima. Não falava nada. O sibilar das altas árvores e a criança com olhos de figo tentando decifrá-lo. Devo ter tido três vidas até agora. Uma, ao menos, empenhei para compreendê-lo. Não desisto de procurá-lo mesmo tendo o encontrado. Apresento o nariz dele, o jeito de pontuar perante a comida, o riso cortando as vogais da voz. Tenho do meu pai também o que não tenho dele. Eu achava sua letra bonita, escamosa, azul. Sempre procurei usar o mesmo tipo de caneta. Ando com duas no bolso diariamente. Minha mulher acha graça - eu dificilmente as uso. É como um relógio de bolso que se emprega como espelho. Ele experimentou cabelo comprido e barba. Morou em Portugal, na Alemanha, em hotel em Porto Alegre. Morou fora e dentro de si. Agora está com um rosto de criança, esverdeado. Suas mãos oferecem marcas de passaporte e outros carimbos e caligrafia. Meu pai nunca guardou pente nos bolsos da calça. Acho que nunca fez pipa, nunca tocou violão, nunca jogou bolita. Sei pouco de sua infância. Tão pouco que o que sei devo ter sonhado. Eu já vi ele se barbear e se cortar com o retorno das mãos. O homem que se corta é meu pai. O homem que sangra tem que ter dor para cicatrizar. Ele cicatriza. Meu pai não sabe conversar longe. Ele te puxa para perto do rosto. Ele conversa com as mãos em meus ombros.Meu pai tem 1,80 m e coloca boinas como uma forma acolchoada de pássaro. Se alguém me conta casos dele, eu escuto com extremada atenção para me encontrar. Eu sou meu pai em outra língua. Meu pai gosta de suspensórios, de pastel, de mastigar lentamente as palavras. Não chorei na frente dele em nenhum momento, mas beijei suas pupilas quando chorava. Minha boca já foi sua pálpebra. Meu pai não sai nos jornais, não é conhecido. Não precisa confirmar a fama ao nome. Não é imortal e tem medo da morte. Meu pai é Luiz Carlos Verzoni Nejar, quatro quarteirões de nome, dois deles desocupados, onde me sento para ouvir o chão e tirar os ciscos do olho do fogo. Meu pai é quando Nejar dorme. Meu pai dorme de óculos. Eu aproximo saudades. Saudade é cheirar a cabeça do filho, o cheiro de cria. Meu pai foi gordo, magro, mais ou menos. Nunca o vi jogar futebol, mas me levou uma tarde para o estádio na torcida errada. Ele colocou seu corpo em volta do meu. Não assisti o jogo, e sim seus braços para me proteger. Meu pai não me levava para a escola. Eu copiei sua fé. Meu pai ri alto. Não sabe contar piada, sabe contar estórias. Controlo o salto de sua respiração para saber se está bem. Não bebe vinho e álcool. Lê com voracidade, com os livros espalhados na cama. Perde as coisas com facilidade. Encontra as coisas quando não mais precisa delas. É passional na amizade. Acredita que o mundo está com ele ou contra ele. Não há meio-termo. Um amigo pode virar inimigo em um minuto. Um inimigo pode virar amigo no próximo minuto. Não se muda temperamento. Tem mania por cartas. Um dia sem carteiro é um dia que ainda não aconteceu. Meu pai folheia jornal e revista sublinhando. Tomávamos suco e comíamos pastel em lancheria na rua Riachuelo. Era antes do almoço, no intervalo do serviço. Minha mãe Mariazinha ralhava porque eu não comia nada depois. Era segredo. Fingia falta de fome, o orgulho de ter segredos. Quem não guarda segredos está muito exposto. Eu guardo segredos para me inventar diante do mar. O pai mora diante do mar. Ele escuta música clássica. Música que não tenha letra. Ele é a letra. Meu pai fala do pampa como de um avô. Quando pisa em Porto Alegre é diferente, inseguro, pensa que as pessoas não vão amá-lo. Meu pai é seguro com a Elza ao lado. Elza é sua mansidão, sua calma e copo d'água. Ave que não se assusta com a proximidade. Meu pai tem quatro netos, dois filhos meus e dois da Carla. Os netos podem saber mais do que eu, podem imaginar mais. Meu pai faliu na juventude com seu pai. Sobreviveu à falência e ao contágio social. Perderam os terrenos, as posses, o futuro. Ele se agarrou à palavra. Não soltou o tronco de sua queda. Meu pai transformou seu porão em água-furtada. Corre com ânsia para me dizer delicadezas. Meu pai quer coerência, unidade. Ainda não entende que viver é desorganizado. Meu pai faz 65 anos. Esse que eu descrevo ainda não é meu pai. Mas é um caminho até ele. O único caminho que conheço.

Nenhum comentário:

Postar um comentário