quarta-feira, 21 de janeiro de 2004

OS OSSOS DE MINHA MÃE



Gravura de Escher


Fabrício Carpinejar


Era uma neblina chuvosa, mais noite do que a noite. Tomava um ônibus de Santana do Livramento de volta para Porto Alegre. Meus pés tremiam. O vento vinha de dentro da carne. Golpeava a pele como uma vidraça. Conferi meu lugar numerado - 29 - e sentei ao lado de um homem grisalho, segurando um saco de lixo. O ônibus cheio não permitia escolha. O passageiro tinha um tufo estranho no rosto, a barba desarrumada, bem mais alta de um lado do que do outro. Usava um terno cinza, de corte antigo. O lustro dos sapatos apagado por uma camada de lama seca, como quem entrou feio em um banhado. Eu estava longe da janela, o que não me dava posição de enxergar a movimentação da estrada. Não havia ninguém para me despedir, ninguém para acenar na janela. A luz de leitura foi logo bruxuleando, soluçando nos corredores até encontrar a paz líquida do escuro. O homem na faixa dos cinqüenta anos segurava firme o saco de lixo. Não trazia nenhuma bagagem, mala. Somente um saco de lixo preto de 50 litros. Ele me olhava como quem já iniciou a conversa em pensamento várias vezes e recuou por falta de atenção. Ao invés de falar, tossia e voltava ao posto de guarda das mãos. Meia hora do trajeto e ele tentou travar uma conversa desnecessária: "Nunca vi uma noite tão fria". "Sim", respondi e me calei, mais preocupado em encontrar uma posição para dormir. "Minha mãe me telefonava, mesmo eu casado e com filhos, para ver se eu estava de casaco", disse, indiferente a minha indiferença. "Ela nunca me viu como um homem feito, mas como uma criança antes de ir para escola. Nenhuma mulher a satisfazia, sempre tomava meu lado mesmo quando não tinha razão. Por que toda mãe se preocupa demais? Será que depois de morta ela ainda não fica tranqüila comigo? Será que ela está satisfeita?" Não havia como parar o fluxo, acalmei com uma brincadeira: "Minha mãe nunca está satisfeita e isso me tranqüiliza." Não surtiu efeito. Ele prosseguiu: "Quando pequeno, ela me levava no colo de Santana do Livramento à capital. Não pagava duas passagens, era caro. E eu queria a independência de ter uma poltrona minha e não conseguia convencê-la. Agora eu a carrego no colo. Que ironia!" Não escutava as palavras, como uma canção de ninar, mas a atenção flutuante apanhou com nitidez a última frase. Perguntei: "Como assim, no teu colo?" Catou o lado inverso das pupilas, vi que era vesgo e completou: "Não quis gastar com a remoção dela para o cemitério de Porto Alegre, onde está enterrado meu pai. Muito caro. O cemitério me deu os ossos neste saco de lixo para colocá-la ao lado dele. São leves. Os ossos de minha mãe são leves. Parecem ossos de pássaros. Faz sete anos que morreu". Ele começa a chorar meio desajeitado, engasga novamente na tosse, e eu me encolho de medo diante das cinco horas que faltam da viagem.

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