sábado, 31 de janeiro de 2004

CUMPRIDOR DE PÁSSAROS

Gravura de Robert Motherwell


Fabrício Carpinejar


Ele é um cumpridor de pássaros. Cumprimenta as aves e cumpre o que elas cantam. Sua barba já pode ser coçada pelas costas. "Não tiro a barba, é promessa de viúvo." Com farda militar e um lenço no pescoço, briga com a vizinhança, que reclama que ele é a embaixada de ratos, morcegos e baratas no bairro. Vivaldino nutre profunda amizade com roupas rasgadas, insetos, trapos e louças baldias. Montou uma estranha casa em São Leopoldo. Fez uma ponte entre o pavilhão de madeira e a árvore da calçada. Sua morada é aérea, com madeiras e portas velhas. Um formigueiro com paredes amolecidas, aviário remendado. Juntou sobras de material de construção e inventou labirintos. "Quis imitar meu ouvido esquerdo", me confidenciou. Gatos curiosos entram pelos esconderijos e alçapões e não encontram a saída. A janela do sobrado é a porta de entrada. Ele a empurra, desce numa escada de três degraus para um, vence dois metros e chega à sala principal. Usa fósforos para descobrir as gavetas. Visita lembranças com a distância de um astronauta. Enrola cigarro de palha, enquanto sua cadela Branquinha, que só come cebola, se enrosca aos seus pés. Há o quarto da falecida que ele fechou para a eternidade. "Ninguém entra. Joguei a chave fora para não sofrer tentações." A casamata tem chão leve como esponja, umidade de palha prensada. "Eu engasguei a garganta de um pássaro. Não me cuspiu para Deus, não me engoliu para terra." Vivaldino pensa um monte de pedras. Seu ronco não o deixa dormir. "A coisa mais linda que fiz foi deixar um dia de comprar cachaça para levar meus filhos ao matinê."

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