quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/8/2004 11:45:55 AM

CAMISAS BRANCAS

Gravura de Almada Negreiros


Ele acordava cedo apenas para escolher a camisa branca. A mesma Hering, tamanho G. Demorava horas a pensar qual colocaria. As suaves diferenças poderiam ser percebidas pelas golas. Havia golas mais roídas ou aparadas ou novas. Somente ele notava algum contraste entre as malhas. Botava o jeans surrado e os sapatos pretos. Usar roupas iguais não diminuiu o tempo de sair. Passou a chegar ainda mais atrasado para o trabalho. As manias vão se aperfeiçoando. Era alto, mais alto do que seus colegas. Mais alto do que sua porta. Não aparecia nas fotos. Uma escada nunca aparece nas fotos. Ninguém conta os degraus de uma escada. Passar por debaixo de uma escada dá azar. Ele fracassava ao ser educado. Ao tentar apanhar algo que caiu no chão de outra pessoa, seja livros, seja papéis, demorava monstruosamente. Não completava sua intenção. Sua cama lembrava um sofá, sem tevê. Nunca dormiu verdadeiramente numa cama, os pés sempre para fora. O mundo não tinha alfaiate para sua altura. Atravessou toda infância tomando chá gelado. A adolescência foi trocar o chá pelo café. Não dispensa sua caneca verde em nenhuma viagem. Lava e a carrega como um sapato embrulhado em jornal. A caneca já quebrou a borda de segurar, o que o deixou deprimido durante uma semana. Ele é alto, mas não anda curvado. Qualquer um que passa por ele se sente um porão. Anda tão reto que chega a doer. Fica mais alto ainda quando senta. Há um esforço de vento para se manter. Um esforço de perfeição que o torna altamente imperfeito.

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