quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/8/2004 02:41:15 PM

VOU COMER VAGEM

Gravura de Paul Klee


Não quero procurar somente o que gosto, ficar preso a um gosto que julgo meu por toda a vida. Como um tipo de sangue. Um registro sonoro. Ter uma única opinião para todas as ocasiões. Ter uma opinião vestindo preto para não errar. Ter uma sentença esperando um culpado. Contorcer as circunstâncias para inventar uma biografia que faltou coragem de experimentar. Nunca comi vagem, mas a odeio desde pequeno. Criei o hábito de julgar pelos olhos, quando eles procuram o invisível. Evito provar tira-gosto, com medo do azedume, de minha careta e de não saber o que fazer com o enlatado na boca. O mesmo acontece ao comer peixe - como retirar educadamente o espinho que quase está te engasgando, sem que a pessoa em tua frente não repare? Não encontrei a resposta. O guardanapo não guarda fundo falso. Eu penso muito em cada garfada. Eu penso muito e não aproveito o que não vai virar pensamento e literatura, o que é a absoluta falta de palavras. Um cão não pensa nada ao latir. Não sei se vivo para escrever ou se escrevo para viver. Eu mereço que parte de minha vida não seja escrita, que fique inédita como a minha morte, incompreendida, ilegível mesmo aos mais próximos. Eu mereço errar um juízo para aprender de outro jeito. Eu mereço não salvar um poema da minha adolescência. Eu mereço não condicionar o desejo a uma culpa. Eu mereço me esvaziar em contradições. Todo instrumento de sopro pede o recuo da força. A suavidade vem de alguma renúncia. Hoje eu comi vagem. Eu tinha razão antes. Eu a odeio.

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