quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/6/2004 05:57:00 PM

BOLINHOS DE CHUVA

Gravura Matisse


A gente se cobra tanto que esquecemos de fechar a porta. Deveríamos nos pressionar menos. Aceitar que esqueceremos sempre alguma coisa a sair, de que é natural não se lembrar de tudo, de que não adianta se explicar, o melhor é viver sem sinalização. Tão simples. Extraviei a ingenuidade e não coloquei nada em seu lugar. Talvez minha ingenuidade fosse comer bolinho de chuva no sábado de tarde. Ingenuidade é quando temos vó para fazer nossos desejos. Depois, maduros, nossos desejos são bem mais difíceis. O cotidiano poderia ser mais líquido, menos temeroso. Trabalha-se para conseguir reconhecimento que se perde dentro de casa. Fica-se com a família para conseguir o reconhecimento que se perde no trabalho. É necessário pular do jogo de compensações, se permitir não ser bem informado, não saber o que acontece, não depender do tempo para definir o que fazer no dia. Ler um livro que não é lançamento. Ler uma revista velha de consultório de dentista. Cortar o cabelo diferente. Escolher um filme no escuro. Fazer palavras cruzadas com ajuda dos resultados. Tomar a cerveja da visita que não apareceu. Ligar para amigos sem um pretexto. Permanecer de bobeira, ingenuamente de bobeira. Não estocar, não se guardar, não se esconder, não esperar o pior, não xingar. Compreender que o outro pode estar falando a verdade, mesmo que a verdade não seja o que gostaríamos de ouvir. Tanto que recebi uma mensagem de um amigo que fala do distanciamento adulto, do isolamento adulto, que não é solidão, que é algo que nos adia até nos adiar novamente:


"Chega uma hora em que não nos esforçamos mais para aprender. Aprender o que o outro quer, o que o outro precisa. Tudo se torna causa própria: minha família, meus amigos, meu trabalho, minhas festas. E o resto que se dane. Eu lembro de minha irmã mais velha. Era ciumento quando pequeno. Interrogava seus namorados como um cão de guarda. Ela levava na brincadeira e ria da implicância. Eu me dava tão bem, não precisávamos ter alguma coisa em comum. Se ela chorava, eu não queria saber o motivo. Eu me juntava a ela como um pacto até ajeitar seus olhos. Eu dedicava minha vida para ouvi-la. Ela dedicava a sua para me entender. Ela me levava em seus passeios, por mais tedioso que é ter o irmão mais novo colado. E não sentia que estava incomodada, ela tinha orgulho de me apresentar o mundo. Alargou os padrões domésticos. Saiu de casa cedo, fez minha primeira festa aberta aos amigos, me ensinou a dirigir, me deu dicas de como me comportar com as mulheres (o que convenhamos, não deu muito resultado). Passou em primeiro lugar na universidade, era inteligente a ponto de tornar qualquer sucesso dos seus irmãos um tremendo esforço. Ela fazia as provas e os testes sem estudar. Nada parecia complicado. Ela cresceu, teve filhos, casou. Eu cresci, tive filhos, casei. Hoje não há alegria, não há comoção das diferenças, não há compreensão. Não nos prendemos ao telefone e acabamos estranhos, indiferentes, medrosos. Ninguém comemora o sucesso do outro. Nossos filhos não brincam juntos. Não dividimos casa na praia. Como telegramas, só nos comunicamos nas tragédias. As diferenças sociais e de classe nos afastaram. Ela apenas fala de trabalho e viagens, do que gasta e não gasta. Eu não sei o que falar. Cada um procura sua mãe para reclamar, que é a mesma."

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