quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/1/2004 08:45:39 AM

O ESTADO DE S.PAULO, CADERNO 2/CULTURA, página 04, 1º/02/04


Dois autores da geração 60 reúnem suas obras

Armando Freitas Filho e Álvaro Alves de Faria representam principais tendências da época


FABRÍCIO CARPINEJAR

Especial para o Estado


É paradoxal concluir que os poetas pertencem a um gênero secreto, infelizmente, a uma seita de escolhidos e de ungidos provocadores. Mesmo editados, ainda parecem inéditos. Quando surge a obra completa, se surpreende com a constatação de que se conhece somente a metade da voz. Dois dos principais representantes da geração de 60 completam 40 anos de literatura, permitindo uma retrospectiva minuciosa de suas estéticas e propostas. A festa para os autores corresponde a uma revisão crítica para a história.


Um é de São Paulo, Álvaro Alves de Faria, que lança Trajetória Poética (Escrituras, 654 págs., R$ 40), obra reunida de seus 15 livros mais o inédito À Noite, os Cavalos, conjunto recentemente premiado com o APCA 2003.


O outro é do Rio de Janeiro, Armando Freitas Filho, que traz sua Máquina de Escrever (Nova Fronteira, 607 págs., R$ 64), com 12 livros editados além do inédito Numeral, Nominal. Ambos surgiram ao mesmo tempo, inspirados de maneiras diferentes. Álvaro é engajado, busca a explosão temática, fora da linguagem. Sua trajetória é ideológica, política, acreditando nos versos como uma forma de despertar a inconformidade com a realidade social. Foi preso cinco vezes durante a ditadura ao recitar publicamente O Sermão do Viaduto, em 1966. Armando, camaleônico, persegue a libertação dentro da linguagem, armando-se de uma linhagem mais clássica do poema para fazer colagens das experiências do cotidiano. Uma imagem possível, apenas para a compreensão, é uma cruza de João Cabral com as experiências de Cacaso e Ana Cristina César, ou seja, uma dicção rigorosa, cadenciada de versos longos, com súbitas iluminações coloquiais, flagrantes da rua e do senso comum.


Ainda que formal, tem um temperamento passional, febril, instantâneo.


Representa uma das vozes mais singulares da poética brasileira pelo hibridismo e capacidade de assombrar com novos experimentos e transgressões.


Como um rapper, oferece um registro de música falada, absorvendo os obstáculos verbais, o palavreado rude, as quebras, e os convertendo em melodia. Não traça uma poesia em linha reta, mas em diagonal, em cadeia de aliterações e elipses, cortando, sangrando, em explosões subcutâneas, de dentro para fora, o corpo do poema pressionando o corpo da cidade. O andamento funciona, como receita um de seus versos, "por partes consultadas asperamente, fora/ da ordem natural, repentinas!/ Com largos silêncios estourados/ por trechos interrompidos (...)".


Sua escrita revela uma cegueira sonora. De um teste farmacêutico, Duplo-cego, retira o mote de um de seus livros (assim como empreende com a fotografia em 3X4, com o consumo em Marca Registrada e com a missa fúnebre em De Corpo Presente), expondo o encontro às escuras entre escritor e leitor. A droga desconhecida tanto por quem a recebe quanto por quem a administra é uma metáfora do mistério e da instabilidade cardíaca. Armando escreve com raiva escura e úmida. Escrever é aclarar gradualmente a ira em erotismo. Risca o fósforo e permanece com a chama mais do que devia, "até que os dedos queimem". Está sempre em movimento, em desafio, friccionando a paisagem carioca, observando a orla e o Pão de Açúcar ("o primeiro arranha-céu") sob o ângulo do estranhamento, porque "o mar não pára" e ele é destinado a imitar a violência das águas. Não há destino, mas intermitente recomeço. Seu andar é mais disparo do que caminhada. Todo detalhe é ampliado e distorcido em um "olho mágico". Por exemplo, converte as unhas rachadas da velhice de Drummond em símbolo do homem partido, da paternidade inalcançável. Não há espaço para recuar, obrigado a sair ao mundo, sem o recolhimento de sítios domésticos. "Depois que os pais passaram/ a paisagem é recortada rente/ nas costas, e não se pode dar/ passo atrás, pois não há mais/ pátio, casa, quintal, chão."


Álvaro tem uma queda religiosa, não se importando com a velocidade, mas em repercutir a gravidade de sua desilusão e permanente exílio. Nunca está inteiro em seu próprio lugar, feito de dissidências, estilhaços e rompantes.


"Fica dentro de ti, onde não existe mais/ onde te feres/ e te deixas/ onde não estás.// Cala as aves/ no alpendres da manhã/ entre operário feridos/ a cantar o hino nacional", anuncia em um auto-retrato. Desconfia da vida paralela das palavras e da chance de posteridade. Álvaro carrega a pecha do poema como crônica, como desabafo, alarde aos hábitos viciados e à realidade bruta e brutal. Reflexivo, pisa na pedagogia ao oprimido, resvalando ora em autopiedade, ora em exultação da resistência. Expressa uma mensagem de contestação (ainda marcada pelos anos de chumbo e pela poesia social de Neruda), um contrabando de sabedoria, correndo o risco de subjugar a própria espontaneidade das imagens a um conteúdo momentâneo. Torna-se mais um testemunho do que criação. Se Armando ocupa o espectro de invenção, Álvaro, por outro lado, expande-se no front da intervenção. É o que melhor sintetiza a geração de 60 pelas suas virtudes e defeitos. Os poemas se firmam em paralelismos, dando uma miragem cantada. "A palavra noite nada significa/ senão que é a noite essa paisagem distante/ em que se debruçam poetas antigos/ senão que é a noite/ a palavra que nada diz/ senão que a noite é só noite/ é só noite/ é só noite/ é só noite (...)." O dissabor social acaba se misturando a um descontentamento literário. O poema é também discutido e posto em dúvida. A metalinguagem paira acima da própria poesia. O que pode incomodar é a exagerada reiteração do que é a poesia e como ela deve ser feita, uma insistência em conceituar negativamente o trabalho e o futuro.


"Fica o nada/ do poeta: a obra não permanece" (À Noite, os Cavalos, 2003) ou "O poema é inútil/ como um catecismo/ inútil como/ uma maçã" (O Azul Irremediável, 1992).


Nos Poemas Portugueses, ao se situar fora do País, curiosamente, é que acha a pessoalidade de seu timbre e o tom inconfundível da sensibilidade, não sofrendo da necessidade auto-imposta de defender uma causa ou os limites de sua vivência geográfica. Desvia a atenção da denúncia para pequenos quadros líricos, descrevendo Lisboa como o paletó escuro do pai, reparando na louça verde dos varais, caminhando pressentimentos. Esse Álvaro é um poeta diferenciado, tomado apenas da espontaneidade em acompanhar a sinfonia flutuante das palavras desnecessárias e, portanto, inesquecíveis: "Eu me arrependo de tudo,/ até do que não fiz." Em Portugal, ele encontrou Alberto Caeiro em si e se regozija do que não viu. "Observo as mulheres de negro/ que não caminham em mim, mas terminam em mim,/ como se concluem os rios."


Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de "Caixa de sapatos" (Companhia das Letras, 2003), entre outros.

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