quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/17/2004 10:03:18 AM

Da série MINHA INFÂNCIA NÃO ATRAVESSA A RUA SOZINHA:


Fabrício Carpinejar

Gravura de Portinari


Quando passo por um jogo de futebol, várzea ou bate-bola na rua, ando com minha cabeça virada como uma cadeira giratória, uma girafa, para não perder nada. Posso tropeçar feio. O que está à frente é o que fiz atrás. O futebol é algo como uma hipnose. Eu tinha um tênis branco de pano. Era meu preferido. Eu o obedecia, ele mandava em mim, virei seu brinquedo. Acreditava que me transformava em craque ao usá-lo. Meus patins esfarrapados. Quanto maior sua gastura, mais macio se tornava. O par ficava imundo da terra vermelha e dedicava horas da noite para esfregá-lo na tábua do tanque. Esfregava como quem dedilha madeira para descobrir fogo. Confiava nele como verdadeiros pés. No bairro, as partidas aconteciam sem rede na trave. Rede na trave significava festa e campeonato, presença dos pais e piquenique. A respiração aquecia demais nessas horas, provocando insônia e conversas repetidas durante a véspera. Quando sorteávamos o lado do campo, procurávamos colocar o adversário no lado esquerdo. Nem aí para a posse da bola. No canto destro, no fundo da goleira, havia um formigueiro. Nossa tática consistia em acertar o formigueiro no início do jogo. Se explodíssemos o monte com força, gritávamos gol, diante da incompreensão dos visitantes. As formigas vermelhas saltavam raivosas, iradas, irritando ao longo da partida o goleiro adversário. Obrigado a se adiantar, a vítima facilitava qualquer lance por cobertura. Aos poucos, a gente foi sofisticando as ciladas. Tivemos casa de joão-de-barro na forquilha e colméia atrás do alambrado. Não preciso dizer que o nosso time se chamava "Animais". Exageramos na final do campeonato entre a rua Lageado e a Soledade (ah, os guris tinham que morar na rua para participar do time. Uma das indecisões comerciais foi um guri que morava na esquina de uma e de outra). Um cão fila vinha sendo nossa mascote, devidamente preso numa coleira. Amava a bola mais do que o osso e ficava histérico ao assistir uma partida. Histérico mesmo. No final do jogo decisivo, com o escore zerado, ele se soltou. Vi um corredor polonês se abrir ruidosamente. Ele correu como um cavalo em hipódromo. Tomou a bola na pequena área, enquanto o goleiro deles fugia gritando. O cão arrastou a esfera com a cabeça, lanhando perigosamente seu pêlo, e entrou com tudo dentro da goleira, sem deixar de morder e furar o couro. Ele latia e rodopiava de euforia. O juiz, casualmente meu tio, apitou gol. Como não havia bola para repor, o campeonato terminou naquele momento, com nosso time fazendo vaquinha e comprando ração de cachorro para comemorar.

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