quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/25/2004 10:37:53 AM

Da série NINGUÉM É O MESMO, MESMO QUE SE REPITA

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar


Tu, que tens um porta-retrato do filho ao lado do computador, com folhas atoladas na segunda gaveta, que não acreditas mais em nada para não forçar a esperança a acreditar em ti, que entraste nesse site talvez por um acidente ou por curiosidade, que mal passaste os olhos pela primeira linha e viste que não era contigo, peço que fiques mais um pouco para descobrires realmente que não é contigo. Nada disso é contigo, tudo pode vir a ser. Tu, que nunca estás satisfeita com a altura da cadeira, mas também não sabe como virar a manivela, que diminui os passos para escutar o bambu plagiando a chuva, falo contigo e não comigo. Eu me expulso para dar mais lugar para acomodares teus desejos, tuas queixas, teus temores e alegrias. Tua passagem aqui é rápida como um telegrama, facilmente esquecida. Tu, que gostarias de ser mais percebida, mais elogiada, mais viva, que ninguém nota o vestido novo, o cabelo cortado, que chegas ao trabalho pensando que causarás outra impressão e o espaço vai se repetindo ao dia anterior. Tu, que cuidaste dos irmãos pequenos, que compravas cigarro ao pai e leite para a mãe, que teve que pular a janela para sair com os amigos. Tu, que não estás satisfeita com o emprego, com os hábitos, com o número das calças, com o guarda-roupa, com o guarda-chuva, que esperas as próximas férias como um domingo prolongado, que gostarias de dormir mais e ser penteada pelo vento antes de acordar. Tu, cheia de expectativas, que se diplomou e pensou que tudo estaria resolvido, que se casou e pensou que tudo estava pronto, que teve um filho e pensou que tudo estava chegando. Não te conheço, muito menos sei o que aconteceu na infância, qual foi o primeiro namorado, a primeira transa, o primeiro choque, o primeiro porre, o primeiro do primeiro amor, o primeiro do último amor, é justamente para ti que começo a escrever dentro de tua desistência. Tu, que nunca pensaste que o riso também precisa de aquecimento para não se machucar em rugas, que desejas ler de manhã e viver o que se lê de tarde e que não lês de manhã e nem vives de tarde e sobra a noite para fazer de noite. Tu, que és uma promessa de cheiro, de chá, que coloca olor nos pulsos e no pescoço, que tens receio de chorar onde não se chora, de falar o que não se devia, que te controlas e te censuras para não se entregar. Tu, que passaste a vida a disciplinar o desespero, que seguras a bolsa perto do quadril, que és suave para olhar de canto. Tu estás aqui e não se resolve, porque não é aqui que estás, mas dentro daquilo que procuras. Alguns procuram um endereço; outros, um sentido. Escuta o sangue e não entendes. Tua religião é escutar. Tu, que queres explicações para não se contentar com relatórios, para não se apaziguar em brincadeiras, que não usas relógio para não seres infiel à aliança, que reparas as laranjas germinando abelhas na hora do almoço. Tu que não duvidas ao assinares o nome, mas trocas invariavelmente a data. Tu, que em toda manhã regressas de teu mais fundo e ninguém repara o teu esforço para subir à superfície. Tu, que pareces sombra quando a água passa, que pareces água quando a sombra senta, eu desapareço em ti.

Nenhum comentário:

Postar um comentário