quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/6/2004 11:13:14 AM

BABEL:

Jornal Zero Hora, Caderno Cultura, Porto Alegre, 6/3/04, Edição nº 14076


A POESIA COMO SISTEMA ANTIVÍRUS

Márcio Pinheiro




Carpinejar: decepcionado com Arrabal

Foto: Antônio Pacheco, Banco de Dados/ZH


A perfeição áspera de João Cabral de Melo Neto, que resiste aos imitadores, é o ideal do sétimo entrevistado da seção Babel. Caxiense, 31 anos, o jornalista e mestre em Literatura, Fabrício Carpinejar estreou na literatura em 1998 com As Solas do Sol. Seu livro mais recente é Caixa de Sapatos, lançado no ano passado. O novo livro, Cinco Marias (Bertrand Brasil), chega em abril. Além disso, Caixa de Sapatos sairá em Portugal pela editora Quasi, que já publicou Ferreira Gullar, Manoel de Barros, Adriana Calcanhotto e Caetano Veloso. Biografia de uma Árvore será lançado na Itália pelo selo Terre di Mezzo.





1. Qual o seu livro inesquecível?

Pedro Páramo, do Juan Rulfo. Livro estranho, que relata a volta do filho para seu povoado extinto. Ao percorrer sua antiga cidade, a sensação é que retorna ao ventre de sua mãe.


2. Qual seu trecho inesquecível?

Final de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: "Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. (...)".


3. Qual o livro que mais o perturbou?

Divina Comédia, de Dante. Comecei a ler quando pequeno e aquilo até hoje me provoca pesadelos. Eu jogava amarelinha nos círculos do inferno. O autor foi o que chegou mais perto do lado escuro do homem. Atravessou a chama sem vender e vedar os olhos.


4. Qual o livro que você gostaria de ter escrito?

Libertinagem, de Manuel Bandeira. A obra oferece clássicos como O Cacto, Vou-me Embora pra Pasárgada e Poética. Seu lirismo é libertação, cotidiano transfigurado, notícias de jornais em versos, recortes verbais e instantâneos da vida, o alumbramento da simplicidade.


5. Qual o personagem que você gostaria de ter criado?

Brás Cubas. Ninguém xingou e exigiu tanto do leitor como Machado de Assis. A gente apanha - e o pior - gosta.


6. Qual o maior livro da literatura brasileira?

Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade, com o melhor poema da língua portuguesa: A Máquina do Mundo. Traz uma atmosfera de pensamento, de um homem deixando seu testamento a partir de uma estrada pedregosa.





7. Qual o maior escritor da literatura brasileira?

João Cabral de Melo Neto. Ele não errou nada. Uma regularidade exemplar. Chega a ser irritante sua perfeição áspera, seu modo econômico de derrubar certezas e de provocar a observação mais funda Ele sobreviveu a seus imitadores (e não foram poucos). Criou o melhor sistema antivírus da poesia. Quem tenta o copiar, fracassa com certeza, perdendo o disco rígido.


8. Qual o livro que você mais relê?

A Paixão segundo G.H, de Clarice Lispector. O existencialismo nunca chegou perto da suspensão metafísica da autora, visceral e verdadeira no seu ato de matar a barata e se perdoar com mais violência do que a própria violência.


9. Qual o livro mais superestimado que você conhece?

Finnegans Wake, de James Joyce, o livro que ninguém leu mas todos comentam. Donaldo Schüler fez um milagre, contribuindo para a obra finalmente merecer a sua fama.


10. Qual o livro mais subestimado que você conhece?

A Lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho. O parágrafo inicial é inesquecível: "Aos 16 anos, matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? - logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris". Campos de Carvalho tem uma imaginação descontrolada. Conta-se que apenas seis pessoas compareceram em seu enterro.


11. Qual livro merece ser adaptado para o cinema?

Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Luchino Visconti bem que tentou, mas ficou no papel. Morreu sem realizar a ambição de filmar, deixando o roteiro escrito.


12. Qual livro foi adaptado para o cinema e o resultado foi frustrante?

Videiras de Cristal, um vigoroso romance de Luiz Antonio de Assis Brasil, foi adaptado com pouca criatividade por Fábio Barreto em A Paixão de Jacobina. Nem o trailer do filme é bom. Melhor ler o livro e sonhar.


13. Qual o livro que você daria de presente?

Quase Memória, de Carlos Heitor Cony, para desembrulhar as memórias da família, e Seda, de Alessandro Baricco, uma pintura oriental, delicada e misteriosa, que conta a paixão de um comerciante francês por uma japonesa.


14. Qual o livro que você gostaria de ganhar?

Obra Completa, de Nicanor Parra. Tenho até medo de encontrar. Não quero perder essa esperança.


15. Qual o livro que você procura e nunca encontrou?

Um Pouco Acima do Chão (1949), estréia de Ferreira Gullar, livro que o escritor renega. Como a curiosidade mata, queria comprovar a validade dos versos.


16. Qual deve ser o maior mérito de um escritor?

Autocrítica, nunca colocar a vaidade acima das verdades intransferíveis de seus personagens ou poemas.


17. Cite um grande livro de um grande autor.

Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Tudo o que ele poderia fazer pela literatura está ali.


18. Cite um grande livro de um autor pouco conhecido.

Assim na Terra, de Luiz Sérgio Metz. Uma sinfonia poética pelo pampa, um pequeno mostruário de como a paisagem do sul ainda está aprendendo a falar. Firme como o poncho, suave como o linho. Um livro para nos acompanhar no inverno. Tem a fidelidade do fogo.


19. Cite um livro que você esperava gostar e que o decepcionou.

Um Escravo Chamado Cervantes, do Fernando Arrabal. Era para ser um retrato vibrante, virou uma caricatura.


20. Cite um livro do qual você não esperava nada e que o surpreendeu.

O Livro Invisível, de Vicente Franz Cecim. Uma obra única, diferente e inconfundível da literatura contemporânea.

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