quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/11/2004 10:22:57 AM

SEM JOELHOS COMO OS PEIXES


Fabrício Carpinejar

Gravuras de Franz Kline


Esse texto não é para ser lido por ti. Não começará ou terminará com um obrigado ou por favor. Como uma carta que nunca é encontrada, uma carta que se perdeu e ninguém te avisou. Será uma carta que te escrevi sem recompensa, uma carta pura, não esperando retribuição de um telefonema. Uma carta que escondi em um sapato antigo e acabaste doando a uma outra pessoa, sem nunca tocar o fundo. Uma carta não lida como um dicionário. Uma carta lacrada como o fogo, aberta como o fogo. Uma carta como uma raiz trincando o vaso, um brinco sem par. Uma carta que não é consolação, que não me explico, que não cobro, que não peço nada. Uma carta assim como um vestido usado uma vez, como um número anotado às pressas, como uma aliança que nunca se tira. Uma carta feita com devoção, para dizer que o caracol sempre está reformando a casa, que o mar quer discutir a relação no fim do escuro, que o limão pula do trapézio sem proteção. Uma carta mínima para dizer distrações, soprar inconfidências, para não resultar em testamento. Uma carta que é livro infantil, com mais desenhos do que palavras. Uma carta tímida como uma conversa em parada de ônibus. Uma carta inconseqüente, como todo amor inconseqüente, com a fúria que não arredonda as unhas. Uma carta como quem anda nas marquises para recolher seu gato. Uma carta sem salto, sem gola, sem gravata, sem dedicatória, assinatura e data. Uma carta que seja a de um estranho em tua casa. Uma noite sem o fiado de estrelas, trigo que acorda disposto a cortar as tranças. Uma carta que fala separado por um balcão, um portão, um muro. Que fala com o corpo avançado e as pernas recuadas. Uma carta espalhada em pedaços como cigarras no quarto. Uma carta com verdades e neblina, sem orgulho e sono, dobrado como uma mapa rodoviário. Uma carta com o esqueleto de um pêssego. Que não pode ser destruída porque não chegaste a ler. Uma carta como um bilhete velho, uma nota velha, uma bolsa de praia. Uma carta que ajuda o rio a escolher sua roupa, que não floresce em pó. Uma carta como um filme sem legenda, uma bondade desajeitada, um número de crachá. Uma carta que não tem joelhos como os peixes. Uma carta que se pronuncia redondo em cada vogal. Sem a pretensão de poema, sem a concordância dos defeitos. Uma carta compacta como um favo. Que olha de longe, que vive perto. Esse texto não é para ser lido por ti. Sou o que me procura mais do que procuro. Às vezes, acontece coincidências. Como essa carta.

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