quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/6/2004 12:59:20 PM

O VENTO SE INVENTA NA FLAUTA

Gravuras de Paul Klee


Fabrício Carpinejar


Era senhora de sabedoria irritada, desacostumada. Na volta do serviço, eu passava pelos bancos de praça e ela puxava a conversa e pedia um cigarro e puxava a camisa das palavras para me fazer sentar um pouco no mormaço de seus olhos chiando. Ficava constrangido em negar. "Sabes, guri, a vida é longa para contar, por isso os velhos entram no silêncio e espiam a linguagem da janela. Eles não sabem como começar sua história". Ela engatilhava um assunto e emendava um novo sem terminar o primeiro. Era exageradamente curva. Não poupava sarcasmo com seu problema de coluna. "Eu nasci mulher, virei mesa. Posso colocar um jarro nas minhas costas que não vai cair." Parecia letrada. "Eu falo muito do menos." Seu queixo se assemelhava a uma península, isolada do resto do rosto. Tinha que nadar bastante para chegar de um ponto a outro. "É melhor ser uma antipática viva do que uma santa morta." Ela tossia, tinha impaciência com a própria respiração. "No ano passado, meu marido estava no hospital e não teve alta, foi direto para o alto." Nada escapava do humor ácido. "O tempo serve quando não serve para nada." Treinava o azedume como quem arremessa milho. As pombas não se aproximavam de sua porção de chapéu. Ela se levanta de repente e agradece a conversa. Me dou conta que não falei nada.

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