quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/17/2004 11:37:56 AM

SINFONIA DESAJEITADA

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Eu não fiz pesquisa de mercado para começar na poesia. Não fiz teste vocacional, muito menos perguntei aos meus pais o que achavam da idéia. A poesia é a necessidade de ouvir. Aprendi a falar aos 2 anos. Aprender a ouvir, ainda não tenho certeza. Talvez na velhice, mas aí não estarei ouvindo mesmo. Precisarei que as pessoas se aproximem bem perto de meus ouvidos como quem conta segredos. Na velhice, só quero escutar segredos. O que me levou à poesia é a insatisfação orgânica com a própria satisfação. A gente procura o amor pelo excesso. Nós não queremos concluir nada: um livro, uma paixão, um filme, uma música. Queremos o desejo de estar sendo. Quando pequeno, meu pai me levava para a sinfonia das árvores em frente de casa, em noites cheias de vento. Ele levantava a cabeça para ouvir melhor. Ele levantava a cabeça ao escrever, não baixava como o normal. Enquanto ele anotava, eu ficava intrigado: será que meu pai está plagiando as árvores? Minha mãe não era diferente. Um dia eu a vi escrevendo no avental. Não achava folhas e assinou um longo poema no avental. Sabe o que significa a um menino chegando com bola debaixo do braço, fedido de mato, enxergar a mãe redigindo em um pano? Tudo. A escrita é linha de costura. Mas uma costura por dentro. Ninguém enxerga os pontos. O sangue não cicatriza, porque ele é a própria ferida andando de um lado para o outro, aumentando a insegurança do corpo. Eu apenas sei escrever na insegurança do corpo. Não quero acomodar ninguém, acalmar, não sou uma aspirina, não quero fazer dormir, quero provocar e inquietar, anseio por manter acordada a vida até depois dela. Nos livros de casa, não havia um que ficasse ileso de um rabisco. Escrevia cartas dentro dos livros. Os livros de poesia são generosos, têm mais espaço para escrever cartas. O livro de poesia é o que nos lê. Ele vira as páginas de nosso rosto umedecendo os dedos. E não adianta limpar a saliva, ela germina em suor. Já adolescente, uma cigana me olhou, pegou minha mão como quem descasca uma fruta e avisou: "queres crescer, menino, precisas deixar espaço vazio aí dentro". Juro que me assustei. Depois fui descobrir que escrever é se esvaziar. Transbordar de ausência. O autor que desaparece no leitor realmente escreve. O autor não existe. Quem existe é seu desejo. Pensei que o alfabeto fosse o mundo. Não, o alfabeto é a procura do mundo. A poesia é a procura do alfabeto. Quem diz que encontrou não encontrou, somente desistiu primeiro.


(Fragmento de palestra no projeto Rodas de Leitura do Centro Cultural Banco do Brasil)

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