quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/18/2004 10:01:24 AM

Da série NINGUÉM É O MESMO, MESMO QUE SE REPITA


Texto de Fabrício Carpinejar

Gravura de Arthur Bispo do Rosário


"Uma casa somente será tua casa quando fores o primeiro a sair"

Rodrigo Nejar


Eu gosto de casas antigas, apartamentos antigos, com paredes caiadas e portas e teto enormes. Casa deve ser um livro com figuras, não somente palavras. Tem que contar com quadros herdados, com olhos atrás dos quadros, com objetos que não sabemos ao certo de onde vieram. Uma casa não pode permanecer arrumada, como se estivesse à venda. Uma casa depende de alguma desordem mínima, um atalho, um alçapão, um porão, uma caixa de sapatos, para conservar mortos. Uma casa precisa ser estranha por fora e íntima por dentro. Uma casa tem que ter espaço para cuspir neblina e telhas para derreter queijo na chapa. Uma casa tem que mostrar infiltrações de vez em quando, gripe, chorar pelas paredes. Uma casa sem lagartixa não é ainda uma casa. Uma casa tem que apresentar uma saída pelos fundos, mesmo que seja a janela. Uma casa tem que pedir esmolas ao sol no inverno. Emprestar sede ao vizinho no verão. Seu telefone é o varal. Uma casa não pode ser uma repartição pública, os arquivos estão semimortos. Uma casa sem rabiscos de criança na tinta nova não é uma casa. Uma casa tem que deixar os cabelos compridos, cumprir ninho crespo nos olhos, esboço de pássaros. Uma casa ainda não é uma casa sem as histórias dos antigos moradores, sem o medo dos antigos moradores, sem a alegria do medo dos antigos moradores. Uma casa tem que disputar corrida com a ameixeira. Uma casa deixa seus filhos sozinhos para procurar comida. Uma casa cisca estrelas para discordar da insônia. Uma casa tem que deixar a luz acesa na varanda. Uma casa ainda não é uma casa se não tropeçar no escuro. Uma casa quando ama corta a grama, corta as unhas das sombras. Uma casa odeia seus pais pela liberdade e odeia a liberdade para se reconciliar com os pais. Uma casa tem que ser mansa como a relva, não fazendo barulho ao percorrer a terra. Uma casa furta o miolo do pão e deixa só a casca. As formigas são as artérias da casa. Uma casa toma chá de boldo quando recebe muitos hóspedes. Uma casa toma café forte para se sentir sozinha. A casa é um homem que cochila na palestra da rua. Uma casa respira pela boca. Uma casa ainda não é uma casa se não embrulha os chinelos em jornais. Uma casa precisa de espelho no bolso direito do armário. Uma casa ainda não é uma casa se não escorre como mel abundante pelo pátio. Uma casa se contradiz quando mente. Uma casa se deslumbra com a verdade e exclama pelo portão. Uma casa espera nunca morrer numa reforma. Uma casa aumenta seu quadril depois da primeira gravidez. Uma casa ainda não é uma casa se não desaparecer secretamente na gente.

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