quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/2/2004 07:25:54 PM

Valor Econômico, Caderno EU&, São Paulo (SP), 2/4/04


Poesia


Em "Cinco Marias", Fabrício Carpinejar reafirma que não vale o certo, nem o belo, mas apenas o humano


VIVENDO E ERRANDO

Por José Castello, para o Valor

Foto Renata Stoduto/Divulgação


Desde sua estréia na poesia em 1998, com "As Solas do Sol" (Bertrand Brasil), ecoa no bojo dos versos do gaúcho Fabrício Carpinejar a inegável influência do poeta mato-grossense Manoel de Barros. Mais ainda que a de seus pais, os poetas Carlos Nejar e Maria Carpi. Esse latejar de Barros na literatura de Carpinejar é, quase sempre, a única restrição mais forte - e bastante discutível - que se faz à sua poesia, de resto estupenda. Quem lê "Caixa de Sapatos" (Companhia das Letras), antologia de seus poemas organizada por ele mesmo e que será publicada proximamente em Portugal, pode perceber, com bastante nitidez, tal filiação.

Pois o sopro dessa influência, de resto benéfica, desaparece por completo em "Cinco Marias". Em seu sexto livro, Carpinejar oferece um grave problema ao segmento da crítica que ainda se recusa a nele reconhecer uma grande vocação poética. Fica difícil negar que ele se tornou o mais importante poeta da geração que, hoje, anda pelas beiras dos trinta anos de idade. E é, sem qualquer exagero ou favor, um dos mais importante poetas brasileiros vivos.


Fabrício Carpinejar é um poeta voltado para a imperfeição, que ele vê como o sumo da vida. E esse interesse pela vida o leva a misturar, em doses delicadas, poesia e narrativa. "Cinco Marias" se baseia numa notícia de jornal, na verdade uma falsa notícia, datada de 31 de outubro de 2045. O suposto recorte do "Diário do Sul" vem reproduzido no fecho do livro. "Mulher enterra marido no pátio", diz a manchete. É uma nota policial, dramática e simples, que relata um crime cometido em São Leopoldo, RS, a cidade em que Carpinejar nasceu e vive. A professora de música aposentada e poeta Maria de Fátima Ossian, de 45 anos, matou o marido, o psiquiatra e escritor Mauro Ossian, de 70 anos, e enterrou seu corpo no jardim da família. Em estado de amnésia, foi descoberta pela polícia. "Desesperada, gritava que não era seu marido que estava ali, mas os livros da casa." A mulher e suas quatro filhas, conhecidas como Cinco Marias, escrevem um diário coletivo, em que, com identidades embaralhadas, narram sua experiência. Nele, vem a confirmação de que a biblioteca do psiquiatra está também enterrada no jardim.


"Cinco Marias", o livro de poemas de Carpinejar, é o relato tortuoso e fragmentado desse crime. É, ao mesmo tempo, o diário deixado pelas cinco mulheres. "A imaginação desloca as lembranças/e depois não as encontramos", relata essa voz coletiva feminina. Além do mais, essas cinco Marias não podem entender o que foram levadas a viver. "As respostas desobedecem às perguntas", dizem. Ingressaram, assim, no domínio do mistério, que, apesar de sua aparência impressionante, costuma apenas falsificar e esconder. "Mistérios existem para simular profundidade./Sou rasa, fútil", diz essa mulher de cinco faces.


Carpinejar se alija, decidido, de qualquer rigidez poética. É um poeta maduro em seus 31 anos de idade - como se existissem cinco poetas dentro de um só. Um poeta que, indiferente aos apelos da modernidade, prefere escrever nas gretas da carência, ou do desperdício. "As pessoas que são justas,/discretas, comportadas,/ netos ao colo, casos arquivados,/ não rendem literatura. A impureza emociona", dizem as Marias por ele. E mais à frente: "A vida com erros de ortografia/tem mais sentido./ Ninguém ama com bons modos."


Desse modo, na contramão de um mundo que aspira ao límpido e ao instantâneo, Carpinejar pratica uma poesia voltada, apaixonadamente, para o fracasso e o erro. "Não conferir palavras no dicionário./A linguagem se abrevia às pontadas do/parto." É um poeta consciente de que toda perfeição se conclui, sempre, no nada, e da conseqüente inutilidade da poesia, simples poeira diante da grandeza da vida: "Concluir que foste inútil:/fizeste o trabalho para a morte." Apega-se ferozmente ao cotidiano, e é com a atenção voltada para os pequenos fatos que ele narra a história das cinco Marias, certo de que "o cotidiano é um modo de acordar". Dispensa artifícios e floreios: "Estou mais perto de ser real./ Não dependo das rédeas,/ seguro-me nas crinas."


Poeta da carência, Carpinejar escreve, por isso mesmo, em estado de grande assombro. "Somos o que não temos./O que temos, já perdemos de ser", dizem as cinco mulheres. Com essa atitude, a poesia despe-se de toda impostura culta, de toda farsa intelectualista. É feita mais com os nervos e o pulso que lateja do que com a mente. "Eu raspava a fome", dizem as Marias, num verso que define a estratégia poética de Carpinejar. Poesia que não se interessa nem pelo certo, nem pelo belo, mas só pelo humano. Está dito: "Fazer as coisas pela metade/é minha maneira de terminá-las."


Cinco Marias. Bertrand Brasil. 123 páginas. R$ 19

Nenhum comentário:

Postar um comentário