quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/16/2004 08:56:29 AM

ALINE


Eu sou um nada que não está lá, um nada que não está aqui. Não estou no mundo para dizer quem sou. Muito menos fora dele para dizer quem fui. Não há paz no cinismo. Comportei-me mesmo como um cavalo calado, um cavalo que sentiu o caminho errado, mas apenas obedeceu as rédeas do dono. Se eu errei algo, foi por desconfiança de minha voz. Hoje eu preciso urgentemente de um pátio. Visitar minha mãe para abrir a porta de metal pesada e chegar aos fundos de mim, das laranjeiras e dos limoeiros. Eu preciso urgentemente de um pátio, ficar estirado na grama. Os pés descalços como antenas de um inseto. Ficar parado, com o único trabalho de mover os ouvidos para localizar as cigarras. Eu me vejo, Aline, como um vigia do bairro em sua casinha de esquina, com uma televisão portátil na mesa, trancado, fingindo cuidar da rua e fazendo o possível para não dormir, sem força para confirmar os latidos. Essa casinha diminuta é o meu corpo, trancado por fora. Eu reparava em teus cabelos. Mas nunca consegui me antecipar as suas queixas. Mal chegava e já dizias que eu não havia observado. Da infância, eu me lembro do carrinho de rolimã, que riscava as calçadas da rua e assaltava a sesta. A velocidade me inchava. A vizinhança saía enfurecida atrás da gurizada. Depois passei a riscar páginas, outra forma de pedra. Eu ainda temo acordar os vizinhos com meus versos. Eu tenho remorso do que ainda não amei em ti. Tenho remorso de ter escrito mais do que sentia, de ter escrito para alcançar o que sentias. A literatura nos engana. Ela nos antecipa. Pensamos ter vivido o que escrevemos e deixamos de viver depois porque já está escrito. Será que não fui inventado por ti ou me inventei para não sofreres com o que realmente sou? Eu não sei se digo o que queres ouvir, se ouço o que não sei dizer. Tudo é desejo. Eu sonhei que o quarto estava banhado por uma vela vacilante, viscosa, serpente sem língua. E ficava a orar para que ela não se aproximasse tanto. E o vento a jogava cada vez mais perto. E a vela tinha um piercing, que percebi depois ser tua aliança. Não, não consigo me manter de pé, não sou como uma barata que sobrevive duas semanas sem a cabeça. Tu odeias barata. Colocavas o lixo em cima do ralo para não sofrer invasões. Me fazia revirar todos os cantos antes de apagar a luz. Nem leste Lispector para conservar teu ódio. Gritavas quando aparecia uma. Gritavas e pulavas se ela mostrava asas. Uma barata com asas é o inferno. Isso não poderia ser permitido. Nos permitimos tarde.


Com amor,

Fernando

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