quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/4/2004 10:01:09 AM

ALINE


Era para eu nascer no sábado, a mãe foi para o hospital e voltou frustrada. Quis passar o final de semana na praia do ventre. Comecei minha vida numa segunda, como quem inicia um emprego, os dias úteis, o longo expediente de negociação entre o que queremos e o que podemos oferecer, o que desejamos e o que nos é dado. Converso contigo por cartas para me entreter com a sobrevivência. Na infância, me diziam que escrever cartas significava falta de coragem de falar ao vivo. É preciso ter muita coragem para a covardia. Aqui, não baixo meus olhos, não brigo, cada um escuta o outro até o final. Ninguém interrompe, como uma reza. Pode até não se gostar, mas se respeita. O sinal da cruz é uma ameaça. Sei que vai parecer estranho. Sei que troças do meu passado de seminarista, que chegas a dizer que costumo te trair com Deus, que eu falo como se tivesse um público para me assistir. Não dou bola, mesmo já entendendo que tuas brincadeiras são as primeiras parcelas pagas da verdade. E se tivesse traído Deus contigo, já pensaste nessa hipótese? Eu não quero te converter ao que sou, porque não sei o que sou e temo descobrir.


Eu sinto saudade das reformas de nossa casa. O apartamento sitiado, dois aposentos sempre proibidos para a passagem. Não me incomodava nem um pouco a insistência do martelo, o barulho de ferro, o cheiro de tinta. Passamos duas semanas próximos, colados, trabalhando, lendo e almoçando no mesmo espaço. Os móveis e pertences espalhados como um acampamento, as roupas perto da janela e teu riso sem ordem de chegada.


Há partes dentro da gente que nunca serão educadas. A morte, por exemplo. E ficas segurando minha mão durante esse coma, como se eu fosse voltar de uma infância, como se eu fosse uma criança apenas com febre alta. Perto do desenlace, todo marido é filho. Ninguém atravessa a morte casado. Não me vejas assim, me olha como teu homem, não como uma criança onde não há festa perdida, onde não há o medo de começar uma conversa com estranhos; me olha, até o fim, como teu homem. Não suporto a complacência com meus defeitos. Como teu homem, ouviste?


Com amor,

Fernando

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