Reconhecido como importante crítico, Arrigucci Jr. estréia na ficção
FABRÍCIO CARPINEJAR/ Poeta e jornalista, autor de Caixa de Sapatos
Foto(s): Ilustrações de Sérgio Fingermann, Ugolino e a Perdiz/ZH

Grandes críticos acabam sendo subestimados quando ficcionistas. Dificuldade de se separar um do outro e intenção equivocada do público de querer que os ensaístas realizem aquilo que chamam atenção nos outros escritores. Não há como misturar alhos com bugalhos. O mineiro Silviano Santiago é um dos poetas dos mais interessantes, o paranaense Miguel Sanches Neto demonstra conhecimento de causa na narrativa, o gaúcho Luís Augusto Fischer tem um livro de contos, O Edifício do Lado da Sombra, obliterado pela sua capacidade analítica, o carioca Antonio Carlos Secchin, um dos entendedores de carteirinha de João Cabral, não precisa provar sua voz depois de Todos os Ventos.
Desafiando e vencendo a implicância, Davi Arrigucci Jr., professor aposentado da USP, autor de ensaios fundamentais sobre Cortázar em O Escorpião Encalacrado, Drummond em Coração Partido e Manuel Bandeira em Humildade, paixão e morte, estréia na ficção com Ugolino e a Perdiz (78 páginas, R$ 29), em belo projeto gráfico da Cosac e Naify, com ilustrações de Sergio Fingermann. A reação mais previsível com o lançamento é encabular a crítica, com dificuldades de se alçar ao patamar reflexivo do próprio autor. Nada disso deve prevalecer. Arrigucci Jr. oferece um delicioso enredo enfocando a caçada obstinada de Ugolino Michelangeli para vencer as artimanhas de uma perdiz. Acompanha-se a preparação para a expedição com os cães e compadres em busca da ardilosa ave. A narrativa se passa em São João da Boa Vista, com atmosfera de interior e o domínio do campo restrito a alguns fazendeiros. Trata-se de uma história herdada, contada por quem a escutou, não pelo protagonista. "Eu o conheci por esse tempo, após a famosa caçada, e o que conto, sem tirar nem pôr, são as suas exatas palavras." O narrador logo anuncia a fidelidade do relato. O que ele promete pode cheirar a despiste. A narrativa oral é emoldurada pelo anonimato, com a inserção recorrente, mesmo que deformada, de provérbios populares para dar autenticidade própria do causo. Assim aparecem hora e outra expressões como "como se em casa de ferreiro o espeto fosse mesmo de pau", "mato sem cachorro", "apreciava mais uma perdiz na mão que a honra voando", "o que era doce, acabou-se". O estilo é tortuoso, convincente, como diálogos editados dos jagunços de Riobaldo. À medida que o narrador se vale de algo que escutou de Ugolino, abrem-se duas caçadas: a literatura como forma de investigação da realidade e a corrida pela perdiz propriamente dita. Ambas se fundem na fábula em planos paralelos e simultâneos ao leitor, tanto na procura pela palavra certa para definir a teimosia de Ugolino como na absorção dos planos quase infalíveis para fisgar o bichano. "Às vezes atira no que viu e acerta no que não viu. E para ele, rastrear o significado de uma palavra não deixava de ser também uma forma de caçar."

Conforme diz o protagonista: "as coisas têm muitas margens e são mais ondulantes do que parecem à primeira vista". Apresentando as voltas de uma emboscada, os pensamentos são incompletos e involuntários, se reforçando com freqüência. A narrativa tem uma proposta esquiva, ainda que desenhada em segura simetria, feita de subnúcleos. A exemplo das circunferências de Dante, círculos menores forçam o círculo maior, que é o embate entre Ugolino e a perdiz. As circunstâncias falhas e certeiras determinam o temperamento e a sina do caçador, pois caçar "é aprender a ficar alegre e triste ao mesmo tempo".

(Jornal Zero Hora, Cultura, Porto Alegre/RS, 10/4/04, edição nº 14111)
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