Literatura
Perse é um Rimbaud adulto
FABRÍCIO CARPINEJAR/ Jornalista e poeta, autor de Caixa de Sapatos e Biografia de uma Árvore

Bruno Palma traduz um dos poemas mais importantes do século 20, Amers, de Saint-John Perse
Foto(s): reprodução/ZH
O que seria da poesia de Rimbaud, que abandonou a literatura aos 20 anos, se ele continuasse a escrever? Ele realizaria o que Saint-John Perse alcançou. Essa crença leva em conta a língua como resultado de seus habitantes, a evolução de um poeta a outro, a reencarnação de livros e temas. Perse é um Rimbaud adulto; Rimbaud é um Perse jovem. O mesmo destemor oracular, as mesmas fagulhadas precisas, incisivas, simbólicas. Ambos chegaram tão próximo da verdade que ultrapassaram a loucura. O primeiro retratou o inferno; o segundo, o paraíso. Rimbaud denuncia; Perse celebra. Somando os dois, tem-se uma nova Divina Comédia.
Natural da ilha de Guadalupe, Prêmio Nobel de Literatura de 1960, Saint-John Perse (1887-1975) foi uma das expressões mais puras da língua francesa. Sua importância pode ser avaliada pela qualidade de seus tradutores: T.S Eliot em inglês (que confessou que seu conhecimento de inglês e de francês não abarcava o potencial do estilo), Ungaretti em italiano, Lezama Lima em espanhol, Walter Benjamin em alemão. O nome do poeta, na verdade, é Alexis Léger. O pseudônimo foi escolhido ao acaso e às pressas para sua estréia e gerou a independência de visão de mundo, diferenciando o escritor do diplomata.
Ninguém é capaz de repetir as miragens de Perse. O autor queima consigo as possibilidades de sua fórmula. Percebia a poesia como o território mais próximo do real absoluto, um real mítico, escapando de qualquer demarcação histórica, pessoal e geográfica. Não imita a realidade, mas a transfigura, recenseando as dimensões do sonho e do inconsciente. A manifestação lírica emerge avulsa, autônoma, como nascimento de um corpo, contra a abstração e tratando a métrica ora como movimento marítimo, ora como as dunas dos deserto. Sua fala se derrama em mágica oralidade e se desdobra em imagens alucinantes. A claridade disputa espaço com a clareza, como lâmpadas acesas durante o dia.
O escritor Bruno Palma devotou três décadas para traduzir Amers, obra central de Perse, com a experiência de ter trazido a lume Anábase, em 1979, pela Nova Fronteira, Prêmio Jabuti na época. Em 1971, pela editora Grifo, verteu excertos do livro em antologia do poeta francês com o título Marimarcas. Repensou a opção e escolheu para a edição o nome de Marcas Marinhas, favorecendo a leitura do sentido original em detrimento do neologismo. O trabalho é monumental, vencendo adversidades como a sucessão interminável de elipses, as orações intercaladas e a pontuação sistêmica do universo persiano. O resultado recompensa. Palma ressuscitou arcaísmos e se valeu do Glossário de Terminologia Marítima Internacional para preencher lacunas. Houaiss e Merquior ovacionaram os achados. "La Mer errante prise au piège de son aberration" passa a ser "o Mar errante apanhado na armadilha da sua aberração", mantendo a gravidade das aliterações e a fluência das vogais. Assim como a limpidez de "roueries d' ailes rétives" continua potável em português, "ardis de asas arredias", reforçando o recuo dos "erres". Há momentos em que a versão supera a matriz: "les vieux flocons d' écume jaunissante" vira "os velhos flocos de espuma amarelescente".

Diante do mar, não adianta sussurrar, cochichar, falar baixo. O mar pede o grito, a empostação da voz, a enxada do pulmão. "Há que gritar? Há que criar? - Quem pois nos cria neste instante? E contra a morte mesma não há senão criar?" Nesse sentido, o "oceano severo" exige o teatro proposto por Saint-John Perse, uma arena multifacetada que envolve tematicamente suas relações com o comércio, os amores, o alfabeto dos astros e com a religiosidade. "Há que gritar? Há que rezar?..." O mar é a seara escolhida entre o mundo físico e imaginário, capaz de revelar "o gosto de viver o homem, em toda a sua medida". Depois da Odisséia de Homero e antes de Omeros do caribenho Derek Walcott, Saint-John Perse é o que melhor explorou o arquétipo como epicentro de façanhas e dos desastres humanos, caos disciplinado, elemento que vai integrar o seu repertório simbólico preferido, ao lado do vento e do deserto (Anábase). Sua linhagem é do poeta criador, inventor fora de si. Não descreve as coisas ou a paisagem, funda o mundo verbal. Estranha o viver, rompendo os costumes. Acredita que a missão do poeta é ser a "má consciência do seu tempo", o que contesta a inércia visual. Nem que para isso custe sobrepassar o entendimento e conviver com as coisas ilícitas. Porque o mar que se abre à beleza é ainda o mar do transe e do delito. Perse não é maniqueísta, mostra a verdade sem apagar a crueldade e o mistério de sua busca, provando que o útil não é o verdadeiro.
Em sua cosmogonia, o poema é maior do que o escritor. Ao mesmo tempo em que apresenta uma liberdade metafórica excessiva, não abdica da construção formal rigorosa e exata. Instaura uma sensualidade líquida entre as palavras, canção derramada, marcha das marés, reproduzindo o fervilhar das correntes com a repetição das consoantes. Radicaliza o texto em vibrações, provocando uma leitura pela intensidade dos sismos. O poeta caminha em direção ao absoluto com a simplicidade de quem levanta a âncora. Barqueiro ébrio das metáforas, suas composições são desconcertantes, com uma solidez pictórica que materializa o fantasmagórico e o sobrenatural. "O relâmpago no mar busca a bainha do navio..." ou "até seus fins de vespas amarelas,/ O verão que perde memória nos roseirais brancos" são alguns exemplos de hiperatividade sensorial. O que para a maioria dos escritores seria gordura e excesso, em Perse é essencial como uma vértebra. A atmosfera suntuosa dosa ternura com ferocidade. A dificuldade de interpretação estimula a polissemia.
O escritor transforma o verso em versículo, em altissonante timbre profético. Exulta o mar como uma pátria autêntica. Uma monarquia onírica. Não é uma poesia que se define, mas que se multiplica na dúvida, no escoamento de hipóteses. Segundo ele, a poesia é filha da interrogação mais do que a filosofia. Perguntar para Saint-John Perse é se maravilhar. Desloca vogais, migra sílabas, acumulando anáforas, denotações e conotações. Em Marcas Marinhas, o mar é apanhado em frenética metamorfose. A toda hora, "muda de dialeto". Para acompanhar, o poeta habita a mutação, o fulgor. Do lento artesanato das ondas, o mar aparece em diversas roupagens, como "uma pele de búfalo", "cor de pedra de estábulo', "carne de romã, figo da África e fruto da Ásia". Fixa-se ao mudar, revirando as vagas, captando o insondável, das sandálias deixadas nas areias pelos afogados até as naus encalhadas das estrelas. Perse acorda as lendas, atravessando as águas e suas efêmeras vidas. Seu tema de meditação é a água salgada, selvagem, de início longínquo. Se a água doce é reflexo, a matéria viva persiana não permite a cristalização, espelhamento, cresce proporcional às distorções produzidas.
O mar trabalha no descanso. Surge como um ente incorruptível, cruel e generoso no julgamento, fazendo o homem sangrar como um galo ou se reencontrar na alga da mulher. Converte o medo em aventura, o receio em excitação. "Do mar também, sabias tu? Nos vem às vezes esse grande pavor de viver." O homem louva o mar, como um cego. Não existe uma condição de impotência humana, mas de respeito e reverência ao que não se entende o suficiente para opinar. Quem vive perto do mar, demonstra Perse, absorve o seu cheiro e a fome de eternidade. Torna-se para sempre cúmplice de seus crimes e desejos. "E de um odor de mar em nossa roupa e em nossos leitos, no mais íntimo da noite."
Repassar Saint-John Perse para o português é comparável a traduzir o cubano José Lezama Lima e o neobarroco Paradiso (missão cumprida pela poeta Josely Vianna Batista). Se a poesia é "fotografia da respiração" (Lezama Lima), respira-se com Perse o oxigênio letal da profundeza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário