Obra traz variações poéticas de uma única cena
Autor de 'Ao Redor do Escorpião... Uma Tarântula' reúne antigo e novo em prosa vulcânica
FABRÍCIO CARPINEJAR
Especial para o Estado

Um conterrâneo de Lins, Raimundo Carrero segue o modelo de obra aberta. Em Ao Redor do Escorpião... Uma Tarântula? (Iluminuras, 186 págs., R$ 35) tempera a matemática literária com o descontrole da paixão. Apresenta uma única cena: Alice com um revólver na mão querendo matar seu marido Leonardo, enquanto ele dorme. Nada mais. O livro se descortina em três cantos: a tarântula ronda a morte e improvisa; na ponte flutuante do céu, o escorpião; e o escorpião beija a rosa da tarântula. Esse nada mais é tudo.
Autor de A Sombra Severa, Somos Pedras Que se Consomem (Prêmio APCA) e As Sombrias Ruínas da Alma(Prêmio Jabuti), todos pela Iluminuras, Carrero potencializa ao extremo do silêncio a escolha da esposa em matar ou não matar. Não há nenhum motivo aparente como traição, ciúmes, vingança para a eclosão do ato, o que ajuda a crescer o estranhamento e o suspense. Pode ter sido a indolência da tarde de domingo ("Um domingo sisudo, cinzento, quando nem se pensava na existência de Deus") ou o pedido dele para cortar as unhas. Na verdade, ela toma essa atitude pela total ausência de motivos, pela felicidade que não compreende e que vicia. O escritor mais diz ao se recusar a dizer. Ao invés de dar um mundo ao personagem, deixa o personagem criar e apresentar seu mundo.
Carrero utiliza a própria pontuação para firmar o temperamento e timbre do personagem. Diferente de Osman Lins, que sinaliza seus personagens no início dos parágrafos, internaliza as vozes no texto. Representa Alice nas interrogações e nas vírgulas e Leonardo nas reticências. A narração oscila do naturalismo ao poético, se passando menos num tempo fixo e mais dentro da imersão dos corpos, agindo semelhante a um ecocardiograma. Escrita jazzística, salta para longe para depois voltar pelo caminho inicial. A frase matricial - "O que faz uma mulher apontando o revólver para o marido?" - acumula descrições, variações de estados de espírito, interpelações como uma bola de neve, sempre retomando o ponto de partida. Ocorre uma sucessão de improvisos girando ao redor desse núcleo. Alice não "quer ofender as carnes", procura um jeito silencioso e apaziguado de matar. Quer uma morte bonita, limpa, um morto decente para talvez amá-lo em seguida. A compulsão pela morte não destoa da pulsão sexual. A morte excita ainda mais, aproxima o par, inibindo qualquer separação, distração e fuga. "Seria escandaloso matar o marido - escandaloso com absoluta convicção seria não matar o marido." Não é uma paixão à toa, é uma paixão pensada, que perdeu os preconceitos e também a noção do que é direito ou errado. Fia-se na dúvida, na crença ingênua de comandar o destino. O trunfo do romance é mostrar veladamente um ménage à trois: Alice, Leonardo e a morte. Será que ela ama a morte mais do que Leonardo? Será que ele não a deseja como uma morte? Em estado simultâneo de observação e obsessão pura, Alice se assiste com a arma em punho, como se fosse uma mulher além dela. Uma mulher supra-real, que precisa "alimentar o revólver" como um amante.
É interessante perceber o quanto na superfície urbana da trama, na linguagem coloquial de Raimundo Carrero, existe um inconsciente simbólico, que reúne o ancestral e o novo em uma só procura. Raspando a consciência da linguagem, aparecem signos medievais do nordeste como o carneiro, a donzela, o arco-íris, o príncipe, elementos determinantes do universo armorial de A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Carrero concilia duas dimensões, a princípio incompatíveis, servindo com clareza o imaginário sem desfavorecer a realidade, o folclore sem descuidar da tessitura contemporânea. Seu jogo alegórico de aproximação da tarântula com o escorpião indica que ainda é possível renovar os mitos.
Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de "Caixa de sapatos" (Companhia das Letras, 2003), entre outros.
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