quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/14/2004 10:51:08 AM

O ESTADO DE S. PAULO, CADERNO 2/CULTURA, domingo, 14/03/04:


Obra traz variações poéticas de uma única cena

Autor de 'Ao Redor do Escorpião... Uma Tarântula' reúne antigo e novo em prosa vulcânica


FABRÍCIO CARPINEJAR

Especial para o Estado


O grupo Oulipo fez sucesso na França, nos anos 40, ao propor a literatura como uma matemática metafísica, espécie de laboratório da realidade, vivendo as inúmeras hipóteses de um enredo. Um dos líderes da turma, Raymond Queneau, em seu livro Exercícios de Estilo, traçou 99 variações de um homem entrando no ônibus. Disposto a abolir o acaso, George Pérec também participou da revolução, criando o monumento ficcional A Vida, Modo de Usar, um romance quebra-cabeça que registra a vida polifônica de um condomínio. Italo Calvino talvez tenha sido um dos mais célebres entusiastas da experiência, armando seu O Castelo dos Destinos Cruzados a partir do jogo do tarô. Retrocedendo séculos antes, encontra-se igual princípio na música de Johann Sebastian Bach. As fugas de Bach trazem variações generosas de um único tema. Na Argentina, Cortázar empreendeu o enredo elástico em Jogo da Amarelinha, legando ao leitor a chance de reagrupar a viagem de diferentes maneiras e capítulos. No Brasil, o pernambucano Osman Lins surpreendeu a crítica com Avalovara, concebendo a criação como uma construção lógica, simétrica e premeditada. Ordenou a história de Abel e suas três mulheres com total controle, tanto em número de capítulos como de linhas.


Um conterrâneo de Lins, Raimundo Carrero segue o modelo de obra aberta. Em Ao Redor do Escorpião... Uma Tarântula? (Iluminuras, 186 págs., R$ 35) tempera a matemática literária com o descontrole da paixão. Apresenta uma única cena: Alice com um revólver na mão querendo matar seu marido Leonardo, enquanto ele dorme. Nada mais. O livro se descortina em três cantos: a tarântula ronda a morte e improvisa; na ponte flutuante do céu, o escorpião; e o escorpião beija a rosa da tarântula. Esse nada mais é tudo.


Autor de A Sombra Severa, Somos Pedras Que se Consomem (Prêmio APCA) e As Sombrias Ruínas da Alma(Prêmio Jabuti), todos pela Iluminuras, Carrero potencializa ao extremo do silêncio a escolha da esposa em matar ou não matar. Não há nenhum motivo aparente como traição, ciúmes, vingança para a eclosão do ato, o que ajuda a crescer o estranhamento e o suspense. Pode ter sido a indolência da tarde de domingo ("Um domingo sisudo, cinzento, quando nem se pensava na existência de Deus") ou o pedido dele para cortar as unhas. Na verdade, ela toma essa atitude pela total ausência de motivos, pela felicidade que não compreende e que vicia. O escritor mais diz ao se recusar a dizer. Ao invés de dar um mundo ao personagem, deixa o personagem criar e apresentar seu mundo.


Carrero utiliza a própria pontuação para firmar o temperamento e timbre do personagem. Diferente de Osman Lins, que sinaliza seus personagens no início dos parágrafos, internaliza as vozes no texto. Representa Alice nas interrogações e nas vírgulas e Leonardo nas reticências. A narração oscila do naturalismo ao poético, se passando menos num tempo fixo e mais dentro da imersão dos corpos, agindo semelhante a um ecocardiograma. Escrita jazzística, salta para longe para depois voltar pelo caminho inicial. A frase matricial - "O que faz uma mulher apontando o revólver para o marido?" - acumula descrições, variações de estados de espírito, interpelações como uma bola de neve, sempre retomando o ponto de partida. Ocorre uma sucessão de improvisos girando ao redor desse núcleo. Alice não "quer ofender as carnes", procura um jeito silencioso e apaziguado de matar. Quer uma morte bonita, limpa, um morto decente para talvez amá-lo em seguida. A compulsão pela morte não destoa da pulsão sexual. A morte excita ainda mais, aproxima o par, inibindo qualquer separação, distração e fuga. "Seria escandaloso matar o marido - escandaloso com absoluta convicção seria não matar o marido." Não é uma paixão à toa, é uma paixão pensada, que perdeu os preconceitos e também a noção do que é direito ou errado. Fia-se na dúvida, na crença ingênua de comandar o destino. O trunfo do romance é mostrar veladamente um ménage à trois: Alice, Leonardo e a morte. Será que ela ama a morte mais do que Leonardo? Será que ele não a deseja como uma morte? Em estado simultâneo de observação e obsessão pura, Alice se assiste com a arma em punho, como se fosse uma mulher além dela. Uma mulher supra-real, que precisa "alimentar o revólver" como um amante.


É interessante perceber o quanto na superfície urbana da trama, na linguagem coloquial de Raimundo Carrero, existe um inconsciente simbólico, que reúne o ancestral e o novo em uma só procura. Raspando a consciência da linguagem, aparecem signos medievais do nordeste como o carneiro, a donzela, o arco-íris, o príncipe, elementos determinantes do universo armorial de A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Carrero concilia duas dimensões, a princípio incompatíveis, servindo com clareza o imaginário sem desfavorecer a realidade, o folclore sem descuidar da tessitura contemporânea. Seu jogo alegórico de aproximação da tarântula com o escorpião indica que ainda é possível renovar os mitos.


Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de "Caixa de sapatos" (Companhia das Letras, 2003), entre outros.

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