quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/17/2004 11:30:24 AM

DENISE SILVEIRA: MEZZO-SOPRANO

Gravura de Paul Klee





Ela acorda a luz para dormir. Fala com as sobrancelhas. Canta para não esclarecer o desejo da fome. Canta para soltar os cabelos. Para se partir com rumor e violência, reunindo-se pacificada fora de si. Não se dispersa no visível, concentra o invisível dentro da unha. Está entre o grito e o sussurro, numa casa aérea. Anda imensa em passos miúdos, arde como se a boca fosse um carvão súbito de vento e chama. Uma árvore acendendo velas na procissão do sangue. Há um teatro aberto em seu ventre. De onde parte a voz, sem indulgência, sem compaixão. Nas igrejas, restaurantes, varandas, não repara em outra coisa a não ser a acústica. Nos olhos, procura a acústica. Um espaço sonoro para ser sondado. Um espaço para desmentir o vidro, a névoa, o umbral das calhas. Um corpo de espaço dentro da voz. Ela abre o silêncio com os dentes, mordendo de leve os ouvidos da altura. Com a pressa do rigor, sopra o que não pode ser dito. Não se esgota, não acaba com quem ela é, não termina de iniciar. Bebe o sopro com medo de se conhecer, com a coragem do medo. Suave, suave, guarda respiração para o retorno. Esconde o dom como um segredo maior do que sua vida. Talento tão evidente que parece difícil, inadmissível, alheio. E o espelho torna-se um esquecimento lento. Talvez se encontre em alguma garagem recitando Belo Belo, amansando os motores e os faróis. Talvez se encontre na mesa com os amigos, com a certeza, involuntária e sem ninguém para contar, de que nasceu depois de sua voz.

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